Título: Como não aceitar as lorotas do governo?
Autor: Rocha, Marco Antonio
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/11/2007, Economia, p. B2

Há quem acredite em duendes. Há quem acredite em saci-pererê. Há muitas outras crendices bizarras. Por exemplo, a da mula-sem-cabeça..., que, para parecer mais horrível e enigmática, ¿solta fogo pelas ventas¿. A da ¿loira do cemitério¿. A do boto. Mas são entes do outro mundo.

Há também quem acredite firmemente nos tiradores de sorte, nos ¿videntes do amor¿ que restauram paixões desfeitas (¿com pagamento após resultados¿), nos poderes do Tarô, nos vaticínios dos horóscopos, nos signos do Zodíaco, nas influências da ¿Lua em gêmeos¿, ou ¿em áries¿, ou ¿em virgo¿ ou em qualquer outra constelação.

São crendices inocentes do vasto mundo do surreal. Aliás, muitos dos representantes do povo, no Congresso, vivem rodeados de escapulários, bentinhos, santinhos, breves, orixás, pés de coelho, galhos de arruda; recorrem a adivinhos, cartomantes, pais e mães-de-santo, benzedeiras, conselheiros espirituais; batem na madeira, não passam embaixo de escadas, evitam encruzilhadas e se deixam guiar, muitas vezes, não pelas ¿forças ocultas¿, às quais um presidente brasileiro chegou a atribuir sua queda, mas pelas forças ¿do oculto¿.

Visto que o logro, a mistificação, o papo furado têm grande aceitação entre o populacho e - ninguém duvide - também nas chamadas ¿elites pensantes¿, por que se admirar com a bovina aceitação das lorotas do governo? Uma sociedade que acredita em bruxedos e na oratória dos bruxos, por que duvidaria da palavra do grande oráculo, que é o governo, e das suas pitonisas?

O problema é a abissal diferença entre um e outro tipo de crença. Acreditar no poder dos astros e das cartomantes não prejudica ninguém e até pode fazer bem para o espírito do crente. Já um pouco mais séria é a crença nos poderes curativos das mezinhas, rezas, exortações, invocações - que afasta o crente dos médicos e facilita a marcha da sua doença.

Todavia, grave mesmo, e comprometedor para o futuro da sociedade e do País, é a crença no governo como o demiurgo e na perfídia dos seus arautos. E esse parece ser um mal que aflige não só a sociedade brasileira, mas até as que tiveram de matar e morrer para conseguir colocar governo e governantes no seu devido lugar, presos na coleira. A máxima à qual os amantes da liberdade, da democracia e dos direitos humanos deveriam aderir radicalmente é a seguinte: os governos são um mal necessário. Precisam ser tolerados, por necessários. Não se pode viver sem eles. Mas, por serem de natureza malévola - como a dos escorpiões -, têm de ser restringidos, fiscalizados, policiados ao máximo. E sempre vigiados com a maior suspeição.

O equívoco-máter a respeito da natureza dos governos foi inoculado no espírito dos cidadãos - paradoxalmente - pelo próprio regime democrático, ao estabelecer que ¿todo poder emana do povo¿, como dizem quase todas as constituições democráticas, inclusive a brasileira. Desse princípio decorre o corolário de que o poder que emana do povo é exercido em nome do povo, para o povo e em seu benefício.

Bonito, mas um ledo engano.

O poder, nas democracias, não é exercido pelo povo. É exercido pelo grupo político que está no governo. E não para o povo. Mas para a permanência desse grupo no poder - e contra toda e qualquer tentativa de outros grupos políticos de assumirem o exercício do poder. O governo, mesmo democrático, é, acima e antes de tudo, um instrumento de poder. De poder político do grupo social que o comanda. Nada mais que isso. E não um instrumento de desenvolvimento econômico, de construção da Nação, de melhoria da vida do povo. Isso tudo é secundário. Um pouco até acontece, em cada governo, mas apenas como decorrência da necessidade dos governantes de neutralizarem as possibilidades de arregimentação de adeptos por parte dos grupos que não estão no poder. O principal mesmo é ficar com e no poder.

Essa é a natureza da entidade governo. É a sua verdadeira personalidade. Independentemente do presidente. Um truculento Hugo Chávez, um paternal Getúlio Vargas, um simpático JK, ou um cordial professor ¿das coisas que a vida me ensinou¿, como o que temos no momento, todos têm a obrigação política de exercer o poder para si e para o seu grupo, em primeiro lugar... Governar para o povo vem em segundo lugar, quando dá!

Dois assuntos quentes do momento precisam ser avaliados sob essa luz: o terceiro mandato para Lula e a CPMF.

O terceiro mandato é um imperativo de preservação do poder para o grupo de Lula, uma vez que ninguém nele tem força e carisma para garantir essa preservação. É ocioso especular se Lula quer ou não quer o terceiro mandato, se ele é contra ou a favor. Este é o rumo a que o grupo se obriga, e as coisas estão sendo todas armadas nessa direção. A anunciada mudança de enfoque da política econômica faz parte desse propósito. O Rasputin dessa armação - o professor Mangabeira Unger - tem de ser levado muito mais a sério do que até agora.

A prorrogação da CPMF é outra peça do engenho. Uma receita da qual o governo comprovadamente não precisa mais, prejudicial para o povo, para as empresas, para as exportações, para o desenvolvimento do Brasil, mas que serve aos propósitos de preservação do poder pelo grupo que comanda o governo. Toda a argumentação do grão-vizir de plantão e dos líderes ¿da base aliada¿ em favor da prorrogação não tem o menor sentido ou a mínima lógica. É a lorota em defesa do Forte Apache.

E se respalda no equívoco de que o governo precisa dessa receita para cuidar do povo.

É uma crendice, mas não sem conseqüências...

*Marco Antonio Rocha é jornalista. E-mail: marcoantonio.rocha @grupoestado.com.br

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