Título: Lições da conversão de Blair ao catolicismo
Autor: Wheatcroft, Geoffrey
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/12/2007, Internacional, p. A2A
No mês passado, Tony Blair delineou seus planos para aliviar a crise econômica na Faixa de Gaza, no seu papel como facilitador no Oriente Médio. E isso é tudo que ele é hoje em dia, muitos degraus abaixo em relação ao cargo de primeiro-ministro, ao qual renunciou em junho. A questão foi posta de forma crua e abrupta então pelo porta-voz do Departamento de Estado, Tom Casey. ¿Certamente não se vislumbra esse indivíduo como um negociador entre os israelenses e os palestinos.¿
Diz-se que aprender a aceitar tais desfeitas com humildade é um dos consolos da religião e, evidentemente, Blair está prestes a dar um importante passo na sua trajetória pessoal, coisa que ele tratou com o papa Bento 16, na sua última visita a Roma como primeiro-ministro.
O jornal católico oficial The Tablet of London agora diz que, pouco antes do Natal, Anthony Charles Lynton Blair será finalmente recebido na Igreja Católica pelo cardeal Cormac Murphy-O¿Connor, o líder da Igreja Católica na Inglaterra e no País de Gales.
As repercussões históricas e as conotações políticas disto são tão significativas como o próprio evento - o que também ilustra, mais uma vez, o grande fosso transatlântico. Não apenas os ingleses agora são um povo não religioso como também, num contraste marcante com os Estados Unidos, a religião não desempenha nenhum papel na vida política britânica.
Durante anos, circulou o boato de que um dia Blair se converteria - a culminância de uma jornada que começou quando ele descobriu a religião em Oxford. Um clérigo australiano chamado Peter Thomson o apresentou à obra de um outro escritor. ¿Se você quer realmente entender o que eu sou, precisa dar uma olhada num cara chamado John Macmurray¿, disse Blair. ¿Está tudo lá.¿
Pouco lido hoje em dia, Macmurray foi um teólogo acadêmico e proponente do ¿comunitarianismo¿ que morreu em 1976 aos 85 anos. Nem todo mundo ficou tão entusiasmado quanto Blair. George Orwell, para começar, desconfiava de Macmurray como um ¿liberal decadente¿, suscetível até mesmo à retórica totalitária.
Seja o que for, Blair ingressou na ala Alta ou ¿Anglocatólica¿ (grupo conservador e ritualístico da Igreja Anglicana), cujos adeptos, a partir de John Henry Newman, têm se inclinado ¿para o papa¿ (como eles costumam dizer) e vão até o fim. Sua esposa, Cherie Booth, é católica, e durante anos ele freqüentou a missa com ela e os filhos, chegando a receber a comunhão o que, segundo os católicos, é irregular e sacrílego.
Tudo isso o diferencia de seus compatriotas. Quando uma vez um entrevistador tentou levantar a questão da fé, o assessor de imprensa de Blair, Alastair Campbell, retrucou: ¿Não falamos em Deus¿, e ao menos naquela ocasião estava totalmente certo.
Em contraposição com os Estados Unidos, cuja Primeira Emenda proíbe o estabelecimento de qualquer religião, existe uma Igreja da Inglaterra, ¿estabelecida por lei¿, e a rainha é sua autoridade suprema. Mesmo assim, enquanto as pesquisas indicam que quase metade dos americanos vai à igreja semanalmente, os serviços deste igreja estabelecida agora são freqüentados regularmente por menos de 2% da população inglesa, enquanto o total da freqüência a todas as igrejas cristãs é de cerca de 7%. (O islamismo é outra história, pois, na Grã-Bretanha, o número de muçulmanos que comparecem às orações das sexta-feiras logo será maior que o de todos os cristãos que freqüentam igrejas.)
Nós, britânicos, não apenas não falamos em Deus, mas somos efetivamente uma nação pagã - e isso vale para nossos políticos. Mesmo quando a Inglaterra era verdadeiramente protestante, isso era mais em termos de hostilidade ao catolicismo do que de adesão ou entusiasmo teológico e, até hoje, demonstrações públicas de fé, que são bastante normais nos Estados Unidos, seriam constrangedoras aqui.
A Grã-Bretanha nunca teve um primeiro-ministro católico, e teria sido politicamente muito difícil para Blair se converter quando estava ocupando o cargo (pense na Irlanda do Norte, antes de tudo). Uma nota de rodapé negligenciada da nossa História é que, na maioria, os primeiros-ministros do século passado foram por origem ¿dissidentes protestantes¿, para usar o termo antigo, de fora da Igreja Anglicana. H.H. Asquith cresceu como congregacionista; David Lloyd George era batista; Neville Chamberlain, unitário; Harold Wilson e Margaret Thatcher, metodistas.
Para ser mais preciso, somente uma minoria dos primeiros-ministros do século 20 era cristã quando adultos,não tendo uma religião pessoal séria. A maioria ínfima inclui Winston Churchill. Seu Macmurray foi Windwood Reade, que escreveu um livro que ficou famoso na época em foi publicado,em 1872. The Martyrdom of Man (¿O Martírio do Homem¿) foi chamado ¿a Bíblia dos seculares¿, embora Nietzsche com água talvez fosse melhor. Churchill aprendeu com Reade que Deus estava morto e que o homem é o dono do seu próprio destino num mundo cruel.
É claro que Churchill cumpriu as formalidades externas - comparecendo a batizados, casamentos e serviços fúnebre - , além de invocar o Todo Poderoso retoricamente. Mas nem ele nem outros políticos britânicos jamais fizeram uma exibição de fé abertamente, certamente não da forma como os candidatos à presidência dos Estados Unidos são obrigados a fazer.
E seria muito difícil imaginar um americano equivalente a Norman Tebbit. Ministro do gabinete e presidente do Partido Conservador na década de 1980, Tebbit foi um dos mais eficazes assessores de Thatcher, um populista de direita durão que se autoproclamava ateu. Mesmo os primeiros-ministros que tinham sua fé mantiveram a política e a religião separadas. Harold Macmillan era um piedoso membro da ala Alta da Igrejha Anglicana, e costumava dizer que, se as pessoas queriam orientação moral, deveriam obtê-la de seus bispos, e não de seus políticos.
Durante séculos, a Inglaterra foi impregnada pelo protestantismo político, no sentido de antipatia pela Igreja Romana. Em 1780, Londres foi varrida pelos tumultos do movimento ¿Não ao Papismo¿(comandado por lorde George Gordon, criador da Associação Protestante, e que se rebelou porque o Parlamento rejeitou sua proposta de revogar a lei que livrava os católicos de certas punições a eles impostas desde o reinado de William III).
E, em 1850, lorde John Russell tentou impedir o restabelecimentos de uma hierarquia católica na Inglaterra. Essa tradição se estendeu por mais tempo do que se podia imaginar.
Em 1945, o Partido Trabalhista ganhou uma eleição com uma maioria esmagadora (para o espanto do derrotado Churchill) abrangendo todos os distritos industriais e grandes cidades, com uma única exceção. O Partido Trabalhista conquistou um grande eleitorado irlandês católico, enquanto os conservadores se apegaram aos seus eleitores ultraprotestantes. E foi naquele ano de triunfo dos trabalhistas que os conservadores ainda assim conquistaram uma maioria de assentos em Liverpool (cidade natal de Cherie Booth Blair), graças ao ¿eleitorado laranja¿, anticatólico.
Hoje em dia, esse tipo de sentimento praticamente desapareceu fora da Irlanda do Norte, e não haverá nenhuma manifestação veemente contra o ilustre recém-convertido a Roma. Mesmo assim, o que Tony Blair tem dito é que sua força tem sido vista, também, como uma fraqueza.
¿Longe de lhe faltar convicção¿, disse o falecido Roy Jenkins, o político trabalhista que se tornou o fundador dos Democratas Sociais e que originalmente admirava Blair. ¿Ele a tem quase em excesso.¿ Blair praticamente admitiu isso: ¿Conheço apenas o que acredito.¿ E essas palavras talvez expliquem muita coisa sobre ele, bem além de sua nova filiação eclesiástica. TRADUÇÃO DE MARIA DE LOURDES BOTELHO
* Geoffrey Wheatcroft escreveu este artigo para `The New York Times¿