Título: A ditadura chinesa do talento
Autor: Brooks , David
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/12/2007, Internacional, p. A11A

Digamos que você nasceu na China. É filho único e seus pais e avós o adoram. Às vezes chegam até a chamá-lo de pequeno imperador mimado. Eles transmitem a você os princípios do confucionismo e, especialmente, os valores da hierarquia e do trabalho duro. Você é enviado à escola. Descobre que aprender o alfabeto chinês é uma fenomenal proeza de memorização. Você é moldado pelas intensas políticas chinesas de capital humano.

Rapidamente, você compreende o que um visitante só vai entender depois de muitas conversas: que a China atual é uma sociedade obcecada pelo talento e a elite governamental chinesa recruta esse talento quase do mesmo modo que a NBA, a associação americana de basquete - rigorosamente, impiedosamente e de maneira completamente elitista.

Quando termina a escola secundária, você sabe que, para entrar numa universidade de elite, terá de prestar os exames de final de curso. Os estudantes chineses são submetidos a essas provas há mais de mil anos.

Os exames não recompensam todas as habilidades mentais. Mas premiam a capacidade de trabalho duro e memorização. A sua adolescência é orientada em função desses exames - seminários intensivos, horas de preparação.

Cerca de 9 milhões de estudantes realizam esses exames a cada ano. Os 9 mil que conseguem os primeiros lugares entram nas universidades de elite. Alguns outros entrarão, no melhor dos casos, em faculdades de segunda linha. Esses desafortunados perceberão que, apesar das suas perspectivas de carreira não estarem permanentemente encerradas, as possibilidades de um grande sucesso diminuíram. Os índices de suicídio nessas escolas são altos, quando os estudantes sentem que frustraram seus pais.

Mas você triunfa. Presta os exames e entra na Universidade de Pequim. Trata seus professores como deuses e sabe que, se tiver boas notas, conseguirá entrar no Partido Comunista. Os ocidentais acham que o PC ainda tem alguma coisa a ver com ideologia política. Você sabe, porém, que não existe nenhuma filosofia política na China, a não ser a da prosperidade. O partido é, basicamente, como uma gigantesca irmandade estudantil. O partido é uma das redes sociais que seus membros usam para enriquecer juntos.

Você é realmente um jovem valioso, porque também triunfa na universidade. As suas oportunidades são inúmeras. Pode conseguir emprego numa multinacional americana, aprender as artes capitalistas e depois retornar ao país e tornar-se um empresário. Mas decide trabalhar para o governo, o que é menos arriscado e lhe dá a oportunidade de enriquecer (ilicitamente) e servir ao país.

GOVERNO DAS CORPORAÇÕES

De certo modo, não importa o que você escolher. Numa empresa ou no governo, você será membro do mesmo ¿governo das corporações¿. Nos países do Ocidente, existem tensões entre o governo e a elite empresarial. Na China, essa elite faz parte da mesma rede social, cooperando para o enriquecimento mútuo.

Sua vida é dirigida pelas regras desse corporativismo. O trabalho em equipe é altamente valorizado. Não há rivalidades ideológicas reais, mas as diferentes redes sociais competem por poder e riqueza. E o sistema recompensa o talento. O chamado Departamento de Organização seleciona as pessoas que provaram sua competência administrativa. Você trabalha muito. Ajuda a administrar as províncias. Trabalha como executivo de empresas estatais dos setores de aço e de comunicações. Sobe rapidamente.

Quando conversa com americanos, percebe que eles têm idéias estranhas sobre o comunismo chinês. E procura explicar a eles que a China não é mais um país comunista. Tem um sistema diferente: o paternalismo com base no mérito. Você graceja: ¿Imagine a Ivy League (liga esportiva formada por oito universidades do nordeste dos EUA, consideradas excelentes, mas muito elitistas) tomando conta da estrutura do PC e decidindo não mudar o nome. Imagine a Associação de Alunos de Harvard com um exército.¿

O governo chinês é um governo de talentos, você diz a seus amigos americanos. Ele administra a sociedade da mesma maneira que um pai prudente administra a família. Algumas consultas são feitas aos cidadãos, mas são basicamente os membros da classe guardiã que decidem, por si mesmos, o que vai servir ao bem comum.

Esse tipo de governo absorve as bases de poder rivais. Antigamente, supunha-se que o crescimento econômico criaria uma classe média independente, mas agora está claro que os segmentos abastados da sociedade foram assimilados pelo establishment Estado/empresa. Antes, os estudantes faziam lobby pela democracia, mas hoje estão contentes com as oportunidades e a liberdade econômica.

O governo das corporações não fica imóvel. Seus membros são rápidos em reconhecer as fraquezas da China e adotar reformas modernizadoras (desde que elas nunca desafiem a ordem política).

Acima de tudo, você acredita que o paternalismo educado fez o que se esperava dele. A China está em plena ascensão econômica. Centenas de milhões de pessoas saíram da pobreza. Existem centros comerciais em Xangai mais ricos do que qualquer réplica americana. As torres de escritórios aumentam, carros de luxo entopem as ruas.

Você se orgulha do que esse ¿governo das corporações¿ conseguiu e agora espera que ele encaminhe a China para o próximo estágio de modernização - a transição de uma economia de manufatura para uma economia de serviços. Mas, no fundo, pensa: talvez seja impossível para uma elite verticalizada, baseada na memorização, organizar uma economia de informação inovadora, flexível, por mais brilhantes que sejam os seus membros. É o tipo de pensamento que você não quer ter no meio da noite.

*David Brooks é colunista do jornal `The New York Times¿

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