Título: Uma saída para a Bolívia
Autor: Fausto, Sergio
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/12/2007, Espaço Aberto, p. A2

Na mesma cerimônia em que foi chamado de xeque da Amazônia por Hugo Chávez e retribuiu o gracejo qualificando-o de rei do petróleo, o presidente Lula afirmou que Evo Morales ¿é a coisa mais extraordinária que aconteceu na América Latina nos últimos tempos¿. A troca de afagos se deu em Buenos Aires, em cerimônia oficial, com a presença de vários mandatários latino-americanos, às vésperas da posse de Cristina Kirchner.

Lula tem razão: Evo é extraordinário. Mas não só no sentido positivo que pretendeu destacar. No mesmo dia, em Oruru, cidade natal do presidente boliviano, seus partidários ratificaram, de novo sem a presença da oposição, a decisão tomada semanas atrás, em quartel militar na cidade de Sucre, aprovando uma Constituição que, imposta unilateralmente, ameaça lançar a Bolívia à guerra civil.

Diante desse quadro, a declaração de Lula é a repetição de um erro, o mesmo que o levou a manifestar apoio à eleição de Evo ao final de 2005, quando este disputava a presidência da República contra seu oponente Jorge ¿Tutu¿ Quiroga, hoje o principal líder da oposição boliviana.

Vistos em conjunto, os dois lados extraordinários de Evo oferecem a chave para a compreensão do desafio vivido pelo Bolívia nos dias que correm. O presidente do país vizinho, um índio aimará, é incomum pela trajetória política que o levou de líder dos plantadores de folha de coca da região de Cochabamba à presidência do país. Nesse percurso, elegeu-se para a Câmara dos Deputados e organizou um movimento social, convertido em partido político, o Movimiento al Socialismo (MAS), que expressa as demandas de amplos setores camponeses e indígenas, historicamente marginalizados na Bolívia. Extraordinário por sua trajetória, Evo também o é na utilização de práticas políticas que forçam os limites do marco legal vigente, e às vezes o ultrapassam, para impor, com base numa maioria temporária e limitada, uma Constituição que praticamente recria a Bolívia como unidade política. Ao ver de seus partidários, trata-se de refundá-la em bases mais justas. Já na visão de seus opositores, com o perdão do trocadilho fácil, mas inevitável, a nova Constituição afunda o país no retrocesso econômico e na confrontação étnica e regional.

As propostas do MAS, em larga medida acolhidas na Constituição aprovada, justificam as preocupações dos opositores de Evo Morales. Sob a bandeira de um ¿Estado plurinacional¿, defende-se a concessão de autonomia a mais de 30 territórios indígenas. Autonomia não apenas financeira e política, mas também jurídica, de tal modo que a administração da justiça se faria segundo os usos e costumes locais. Esses territórios se concentram na região do Altiplano, mas se espalham por todo o país, inclusive nas Terras Baixas, onde predomina a oposição.

Os representantes dos territórios indígenas teriam direito cativo a significativa fatia das cadeiras no Congresso (50%, segundo a proposta do MAS) e, ao contrário dos demais representantes, seriam designados segundo os usos e costumes locais, ou seja, não seriam eleitos (uma espécie de reinvenção do caciquismo político, dizem os críticos). Os representantes eleitos estariam sujeitos a referendos revocatórios de seus mandatos, ao passo que os representantes dos territórios indígenas, não. O MAS defende ainda a criação de um quarto poder, o Poder Social Plurinacional, com representantes dos territórios indígenas e da sociedade civil e atribuições para fiscalizar o governo e regular a legalidade das suas decisões.

Não surpreende que tenha sido a questão das autonomias que levou a Assembléia Constituinte ao impasse. Em contraposição ao MAS, as forças de oposição sustentam a proposta de autonomia dos departamentos (Estados) e municípios, respaldada em referendos populares que aprovaram o regime de autonomia para quatro dos nove departamentos do país (autonomia política e financeira relativa, que não alcançaria, porém, a administração da justiça). As oposições reconhecem as reivindicações indígenas, mas não aceitam a criação de outras nações, com direitos e poderes especiais, dentro do que consideram um só país. Defendem uma só e mesma Bolívia, sob o mesmo Estado de Direito.

A Constituição unilateralmente aprovada em Sucre e ratificada em Oruru deixou de lado algumas das mais controversas propostas do MAS, como a reeleição indefinida do presidente da República e a eliminação do Senado, onde a oposição conta com maioria. No fundamental, porém, ela espelha a visão de Evo e de seus partidários. O governo diz que não recua e que submeterá a Constituição a referendo no início de 2008. Não faltará quem diga ser o caminho mais democrático. Assim pensam os que têm uma visão tosca e plebiscitária da democracia. O governo poderá obter uma magra maioria, mas, se insistir nesse caminho, levará o país a conflagrar-se e dividir-se, talvez irremediavelmente.

É papel do Brasil ajudar a Bolívia a encontrar o caminho da consolidação de um regime democrático que dê vez e voz às ¿duas Bolívias¿, em termos que sejam mutuamente aceitáveis. A oportunidade está colocada pela imensa gravidade do impasse e das conseqüências que podem resultar da imposição unilateral de um lado ou de outro. Evo Morales não é Hugo Chávez e já se mostrou apto ao diálogo. Jorge ¿Tutu¿ Quiroga é um político de convicções democráticas.

Lula precisa medir melhor as suas palavras para preservar o crédito do Brasil com os dois lados da disputa na Bolívia. Deveria unir-se a Michelle Bachelet, presidente do Chile, e buscar a cooperação de Cristina Kirchner, que se declara disposta a estreitar os laços da Argentina com o Brasil, para reduzir a influência de Chávez, se quiser contribuir decisivamente para a solução do impasse naquele país. Não é pouco o que está em jogo.

Sergio Fausto, cientista político, ex-assessor do Ministério da Fazenda, é coordenador de Eventos e Projetos do Instituto Fernando Henrique Cardoso E-mail: sfausto40@hotmail.com

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