Título: No banco dos réus, o terrorismo de Fujimori
Autor: Llosa, Mário Vargas
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/12/2007, Internacional, p. A30

Parecia impossível, mas aconteceu: Alberto Fujimori, que durante dez anos governou o Peru com a brutalidade das piores satrapias da história, está no banco dos réus para responder por seus delitos ante a Corte Suprema. Terça-feira, num dos processos - por mandar invadir a casa da mulher de seu cúmplice Vladimiro Montesinos, disfarçando um de seus colaboradores militares de procurador, em busca dos vídeos da corrupção que podiam comprometê-lo -, ele foi condenado a 6 anos de prisão e US$ 250 mil de multa. No início da semana também começou o julgamento em que a promotoria pede 30 anos de prisão e multa de US$ 33 milhões para Fujimori por sua responsabilidade em dois dos mais cruéis massacres cometidos durante seu governo, os de Barrios Altos e La Cantuta.

É a primeira vez na história do Peru - e creio que na América Latina - que um governo democrático, seguindo os procedimentos legais e respeitando as garantias estabelecidas pelo Estado de Direito, julga um ex-ditador pelos crimes e roubos que cometeu no exercício arbitrário do poder. Fujimori não poderá ser julgado por todas as faltas e ofensas que engordam seu prontuário, mas só por aquelas que a Corte Suprema do Chile admitiu no veredicto que possibilitou a extradição do ex-ditador para o Peru.

Mesmo assim, esse punhado de assassinatos e outras violações dos direitos humanos é uma vitrine diáfana dos horrores vividos pelos peruanos entre 1990 e 2000. E é mais que suficiente para que o ex-presidente passe vários anos na cadeia, como Montesinos e o general Hermoza Ríos, ex-comandante do Exército. Foi esse trio que concebeu e pôs em prática a ¿guerra de baixa intensidade¿ para conter as ações apocalípticas do Sendero Luminoso.

A justiça será realmente feita e o processo e a sentença serão justos? O Judiciário tem péssima fama no Peru e o fujimorismo, embora em declínio, conta com abundantes meios de coerção e reservas econômicas procedentes do saque dos recursos públicos - de centenas de milhões ou talvez bilhões de dólares desviados, foram devolvidos ao Estado só US$ 250 milhões -, mas gregos e troianos reconhecem que a sala da Corte Suprema que julga Fujimori, presidida por um prestigiado criminalista, César San Martín, parece capaz e confiável. É indispensável que o julgamento avance com a máxima transparência, para que seu desfecho seja verdadeiramente instrutivo e sirva de antídoto contra potenciais aspirantes a ditadores.

O processo dará origem a uma interessante controvérsia sobre os alcances e limites da luta contra o terrorismo e a subversão, pois a linha de defesa do ex-ditador é que, se houve ¿excessos execráveis¿ na guerra contra o Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Túpac Amaru, foi por causa do contexto de violência enlouquecida criado no país pelos seqüestros, assassinatos e atentados cegos contra a população civil levados a cabo pelas duas organizações terroristas, cujas vítimas, dezenas de milhares, eram em sua imensa maioria cidadãos sem militância política, sacrificados pelo fanatismo.

É lícito combater o terror com o terror? Um personagem central desse processo será o Grupo Colina, comando secreto formado pelo regime fujimorista em 1991 com membros das Forças Armadas e sob a liderança de um militar especializado em inteligência, o major Santiago Martín Rivas, agora na prisão, para executar operações especiais - torturas, assassinatos, seqüestros e intimidação - contra terroristas e seus reais ou supostos cúmplices, para desencorajar a colaboração da população com os movimentos subversivos.

MASSACRE DE BARRIOS ALTOS

Uma das piores ações do Grupo Colina foi o massacre de Barrios Altos, em Lima, em 3 de novembro de 1991, quando o comando matou a tiros 15 pessoas que promoviam uma galinhada (festa popular de arrecadação de fundos onde se serve frango), supostamente para levantar verbas para o Sendero Luminoso. Não há certeza nem sequer de que todos os assassinados fossem membros ou simpatizantes do grupo. Aparentemente, apenas dois deles tiveram contato com a esquerda revolucionária. O major Martín Rivas, numa entrevista que concedeu ao jornalista Umberto Jara antes de ser preso, explicou que o objetivo da operação não era capturar terroristas, e sim enviar ¿uma mensagem¿ ao Sendero Luminoso: ¿Vamos atacá-lo em seu esconderijo. Já sabemos que as galinhadas e os sorveteiros são seus disfarces.¿

A outra matança tratada no julgamento, a da Universidade Enrique Guzmán y Valle, conhecida como La Cantuta, ocorreu na madrugada de 18 de julho de 1992. Neste caso, a intervenção do Exército foi mais explícita, pois soldados cercaram a universidade enquanto os membros do Grupo Colina, mascarados, entravam num alojamento e seqüestravam nove alunos e um professor, mais tarde fuzilados. A aparição dos cadáveres mutilados, carbonizados, colocados dentro de sacos e caixas, descobertos graças à pesquisa de jornalistas audaciosos, causou grande escândalo no Peru e começou a corroer a popularidade com a qual a ditadura ainda contava.

Até que ponto Fujimori esteve pessoalmente envolvido nessas matanças? Ele as ordenou? Foi informado sobre elas por Montesinos e pelo general Hermoza e ajudou a encobri-las e a garantir a impunidade dos executores? É isso que o julgamento deve esclarecer.

O ex-ditador afirma, é claro, que não sabia de nada, diz que todos esses crimes foram planejados em segredo e ele nem sabia da existência do Grupo Colina. Mas há inúmeros testemunhos dos próprios envolvidos - mandantes e executores dos crimes - afirmando que aquelas operações faziam parte de uma rigorosa estratégia de guerra clandestina ao terror, concebida e ordenada pelo topo da hierarquia militar, que, segundo a Constituição, é o presidente da república. Parece difícil, para dizer o mínimo, que num regime tão vertical e personalizado como o estabelecido pela ditadura fujimorista, comandos de oficiais da ativa pudessem agir por conta própria, sem o aval da hierarquia máxima e utilizando uma infra-estrutura militar em todos os passos que davam, para realizar operações nas quais punham em jogo sua carreira e sua liberdade.

Em todo caso, o certo é que a famosa ¿guerra de baixa intensidade¿ contribuiu, tanto quanto os crimes horrendos do Sendero Luminoso, para encher de cadáveres, de desaparecidos, de mutilados e de medo e ódio o Peru dos anos 90. Cerca de 70 mil peruanos morreram ou desapareceram nessa batalha, na imensa maioria gente humilde e desvalida, cuja desgraça foi estar ali, no meio de dois terrores, integrando aquela massa anônima à qual os ¿terroristas¿ e ¿contraterroristas¿ enviavam mensagens na forma de balas e explosivos para mostrar quem era mais cruel e desalmado.

A melhor prova de que essa estratégia era não só imoral e inaceitável numa sociedade democrática, como também contraproducente, é que a operação decisiva que quebrou o Sendero Luminoso e precipitou sua desintegração não foi a matança promovida pelo Grupo Colina, e sim a captura de Abimael Guzmán e quase todo o seu Comitê Central, levada a cabo por um grupo de policiais sob a chefia do general Antonio Ketín Vidal e do coronel Benedicto Jiménez, valendo-se dos métodos mais modernos de rastreamento e vigilância, sem torturar nem matar ninguém e sem disparar um único tiro.

O julgamento de Fujimori deverá demorar de oito a dez meses. O Peru, que politicamente já deu tantos espetáculos penosos - quarteladas, demagogos, políticas insensatas -, merece agora que a opinião pública internacional se interesse pelo que lá ocorre, não só pelos excelentes índices de crescimento econômico e pela estabilidade institucional, mas também pelo julgamento de um ex-ditador, exemplo altamente civilizado para esta América que, como escreveu Germán Arciniegas, ainda se debate entre a liberdade e o medo.

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