Título: CPMF, a ilusão da verba carimbada
Autor: Kuntz, Rolf
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/12/2007, Economia, p. B2
O besteirol continua a dominar a discussão sobre os impostos, depois de eliminada a CPMF. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, quase conseguiu impingir a uma porção de pessoas - algumas consideradas inteligentes - a idéia de criação de um tributo para financiar a saúde. Até oposicionistas mostraram disposição de entrar na conversa, e alguns teriam aderido à proposta, quase certamente, se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tivesse mandado seu ministro parar com aquilo.
A mãe de todas as besteiras, nesse caso, é uma idéia bem-intencionada: falta dinheiro para financiar os programas e projetos de saúde pública. Há uma variante dessa bobagem: é preciso garantir a destinação de recursos para a saúde e uma boa solução é inventar um tributo carimbado.
Primeiro ponto: é tolice falar em ¿falta¿ de dinheiro para a saúde ou para qualquer outro setor considerado prioritário. Não tem sentido reclamar da carga tributária, uma das maiores do mundo em desenvolvimento, e ao mesmo tempo defender a criação de um imposto para um fim determinado. Só ¿faltam¿ recursos para esta ou aquela finalidade importante porque se gasta muito mal e se desperdiçam montanhas de verbas. Alguém duvida?
Não tem faltado dinheiro para o aumento real da folha de salários. A proporção entre a folha e o PIB pode ser menor do que foi há alguns anos, mas a variação nominal da despesa tem sido bem maior do que a taxa de inflação. Além disso, nenhum dos dez mandamentos ordena o aumento real da folha segundo o ritmo de expansão do produto. Freqüentemente se argumenta como se essa ordem divina existisse, mas nenhum teólogo de respeito sustentou até hoje esse ponto de vista.
Não tem faltado dinheiro para a ampliação do funcionalismo - e as contratações, como já se provou, não se destinaram, nos últimos anos, somente a compensar a eliminação de terceirizados. Recursos têm sido sempre suficientes para a criação de secretarias e Ministérios inúteis, como os da Pesca e o do Planejamento de Longo Prazo, inventados para o governo acomodar companheiros e aliados. Ganhos de eficiência e de qualidade no cumprimento das funções públicas? Não há notícia disso, até porque produtividade e qualidade na prestação de serviços, como sabem os brasileiros bem informados, são bandeiras da reação neoliberal.
Também não têm faltado recursos para financiar o MST e organizações semelhantes. Quanto dinheiro público é dado sem controle a esses movimentos e a outras organizações da ¿sociedade civil¿ protegidas pelo governo e pelos partidos de sua base?
A relação dos desperdícios promovidos tanto pela incompetência quanto pela malandragem seria longuíssima. Derrubado o projeto de renovação da CPMF, parlamentares e funcionários do Executivo ensaiaram, pelo menos, uma revisão do orçamento para localizar cortes possíveis. Obras do Judiciário foram logo lembradas, e com muita razão. Falou-se em podar despesas dos três Poderes, proporcionalmente ao orçamento de cada um. Mas por que de forma proporcional, e não segundo a utilidade social de cada item? De quantos assessores precisa um parlamentar? Por que o contribuinte deve pagar sua movimentação e suas despesas de interesse eleitoral? Só nas emendas orçamentárias o Ministério do Planejamento identificou, de imediato, a possibilidade de cortes de R$ 12 bilhões. A solução poderia ser mais radical. A maior parte dessas emendas é paroquial e clientelística e não passa de aberração num orçamento federal.
Segundo ponto: a vinculação de receitas não garante a qualidade da ação do governo e torna o orçamento inadministrável, aumentando o desperdício. Há verbas vinculadas para a educação em todos os níveis de governo, mas a formação dos estudantes continua desastrosa. Não é preciso recorrer a testes internacionais para saber disso. Basta ver o número de analfabetos funcionais e as dificuldades das empresas para encontrar empregados capazes de receber treinamento. Isso vale também para a saúde e para o saneamento.
Depois, há algo cômico em toda essa discussão: se todos concordam quanto à necessidade urgente de se aplicar mais dinheiro em saúde, por que diabo se precisa de vinculação de verba? Todo governo precisa, sim, de dinheiro para cumprir seu papel e de competência e seriedade para cumpri-lo bem. É parte da ação política - e uma de suas atividades mais importantes - decidir se as verbas irão para esta ou aquela função. Vinculação de verbas não elimina essa responsabilidade, não garante o bom governo nem impede escândalos como o das ambulâncias superfaturadas.
*Rolf Kuntz é jornalista
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