Título: Minipronto-socorro virou a salvação no atendimento em SP
Autor: Marchi, Carlos
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/12/2007, Nacional, p. A6

Assistência Médica Ambulatorial filtra a demanda de urgência e é aprovada por 89% dos usuários

Nos últimos meses, a morte, aparência sinistra, paramentada de preto e portando sua foice, andou invadindo os sonhos da pernambucana Beliza Pereira da Silva, 77 anos, moradora de São Miguel Paulista, como representação das dores no estômago que, quando vêm, queimam como rastilho de um presságio ruim. Há duas semanas ela fez, afinal, a endoscopia e o ultra-som que vão revelar a extensão da sua gastrite. A consulta com o gastroenterologista está marcada para 3 de janeiro e ela, angustiada pelos sonhos com a senhora de preto, se pergunta: vai dar tempo?

Claro que vai dar, diz com lógica a filha Maria Neide. Mas quarta-feira dona Beliza, mais uma vez alquebrada pela dor, foi à Assistência Médica Ambulatorial (AMA) Sítio da Casa Pintada, em São Miguel Paulista, procurar paliativo, enquanto a solução não vem. Sob chuva fina, foi a primeira a chegar, por volta das 6h30, com um sorriso simpático que mascarava a dor. Não tinha reclamações a fazer sobre o atendimento básico de saúde de São Paulo, que ela tanto tem freqüentado. ¿Às vezes a AMA está cheia, mas eles sempre atendem bem¿, disse com bonança na voz.

O atendimento do médico a dona Beliza na quarta-feira foi um dos 14,3 milhões de consultas que a saúde da maior cidade do País propiciará este ano aos 4,2 milhões de habitantes sem convênios particulares - uma média de 3,4 consultas anuais por dependente do SUS. Não há médico que chegue: foram 17,97 milhões de consultas em 2004, 20,86 milhões em 2005 e 20,8 milhões em 2007 (janeiro a outubro); 8,3 milhões de exames clínicos em 2004, 17,8 milhões em 2005 e 21,5 milhões em 2007 (janeiro a outubro). A cidade de São Paulo tem o terceiro orçamento de saúde do Brasil (R$ 3,18 bilhões em 2006), atrás do estadual paulista (R$ 9,2 bilhões) e do federal (R$ 43,6 bilhões).

CPMF E FLUXO

O fim da CPMF não assusta o secretário municipal de Saúde, Januário Montone, ex-presidente da Agência Nacional de Saúde. ¿O problema da saúde não é CPMF, é fluxo¿, diz. Explica: o orçamento que ministros (ou secretários) têm à mão começa o ano contingenciado e com liberações homeopáticas. ¿Quando chega novembro, o governo solta a parte gorda. Mas aí já não dá tempo de gastar¿, ensina. Para ele, bem mais importante que a CPMF é a Emenda 29, que obriga a União a acrescer ao orçamento da saúde, a cada ano, o porcentual da variação nominal do PIB e obriga Estados e prefeituras a investir em saúde 12% e 15% da arrecadação, respectivamente.

Até aqui, São Paulo tem conseguido dar respostas ao desafio da saúde. Uma jornada por cinco Unidades Básicas de Saúde (UBS) do extremo da zona leste não colheu grandes críticas ao atendimento básico. A chave do sucesso, inegavelmente, são as AMAs. Criadas em 2005, elas estão sendo construídas em velocidade vertiginosa: em dois anos, já são 52 (serão 104 até o fim de 2008). Elas são miniprontos-socorros que filtram a demanda de urgência: casos graves são enviados aos grandes hospitais; casos de tratamento vão para as UBS.

Uma recente pesquisa do Ibope apurou que 89% dos usuários aprovam as AMAs; e 88% das pessoas ¿certamente¿ ou ¿provavelmente¿ as recomendariam a outras pessoas. Mas é exatamente no seu sucesso que reside seu risco. O diretor do Hospital Campo Limpo, dr. Ricardo Gebrin, diz que as AMAs, no começo, aliviaram as emergências dos hospitais, mas agora começam a ser muito requisitadas, fruto da fama de seu bom atendimento.

Mas nem todo mundo gosta das AMAs. No Conselho Municipal de Saúde (CMS), elas viraram alvo de ácidas críticas. Maria Adenilda Mastelaro, representante da zona leste, acha que não é necessário construir mais unidades. João Francisco Ribeiro, representante da zona norte, quer que o dinheiro usado para construir novas AMAs vá para as UBS. ¿Convide-os para dizer isso, num debate comigo, na frente do povo que eles representam¿, rebate, com ironia, Montone.

Há poucas equipes do Programa Saúde da Família (PSF), diz o CMS. A meta era atingir 1.200 equipes em 2007 e existem 948. Não é fácil montar e manter essas equipes, compostas por um médico, uma enfermeira, duas auxiliares de enfermagem e cinco a seis agentes comunitários. O agente é morador da região e representa o elo com a comunidade. Visita dez famílias por dia e traz delas informações preciosas sobre o ambiente onde vivem. Descobre más condições de vida e traz relatos de córregos contaminados ou regiões infestadas de ratos, doentes mentais mantidos cativos, crianças espancadas, casebres úmidos e fumantes inveterados. Quando um agente deixa o trabalho, é difícil repor o substituto. O PSF opera em regiões dominadas pelo crime. ¿Aqui, 85% dos moradores são dependentes do SUS¿, revela Vera Manchini, diretora da UBS Iaçapê, em Sapopemba.

O CMS diz que os salários dos médicos da prefeitura são baixos ante a remuneração paga a seus médicos pelas organizações sociais (OS). A gestão das OS - como as Santas Casas ou o Einstein - flexibiliza a gestão da saúde, diz Montone. ¿O serviço público tem vícios que o meio privado não tem¿, admite a assistente social Beatriz Quartin Barbosa, assessora da direção do Hospital Campo Limpo.

ORGULHO DE POBRE

Na sexta-feira, enquanto aguardava atendimento para tratar a pressão alta na AMA Campo Limpo, Maria Eliza Rosa da Silva, que mora no Jardim Umarizal, se dizia orgulhosa de se consultar com médicos do Hospital Albert Einstein. O milagre das OS foi conseguir levar médicos para trabalhar na periferia da cidade. A isca foi oferecer artifícios sedutores - muitos deles dão um plantão de 12 horas por semana, ganhando R$ 600. Mas a crítica do CMS não encontra guarida nem entre os médicos do serviço público: muitos contratados da prefeitura trabalham também para as OS.

Glória Maria Simões, moradora de São Miguel, não está nem aí para o tipo de remuneração do médico: ¿Eu quero é ser bem atendida¿, disse ela, enquanto reclamava da demora para marcar exames na AMA Sítio da Casa Pintada. Membros do CMS afirmaram que a demora para marcar exame está chegando aos quatro meses, mas uma simulação feita pelo Estado apontou um prazo máximo de 35 dias. Glória, por exemplo, conseguiu marcar seu exame Papanicolau para o dia 27 e logo virou a casaca: saiu elogiando o atendimento.

Os conselheiros da saúde paulistana rejeitam o filtro das AMAs. Querem que o usuário vá direto ao especialista que preferir. Montone replica que a AMA organiza o sistema, como o gate keeper, o médico de família que é a porta de entrada no notável sistema de saúde da Inglaterra, inspirador do modelo.

Mesmo assim, há desperdícios. A pediatra Selma Buff, gerente do laboratório de especialidades de Vila Prudente, conta que o Programa de Saúde Ocular para Escolares testa, todo ano, a acuidade visual dos alunos da primeira série. Os que acusam deficiência são chamados para uma consulta com o oftalmologista e podem escolher gratuitamente seu par de óculos entre seis modelos, tudo pago pela prefeitura. ¿Este ano, 70% dos alunos não foram levados à consulta¿, conta.

A distribuição gratuita de medicamentos foi criada para os usuários pobres dos SUS. Por isso é surpreendente que 40% dos medicamentos gratuitos sejam retirados com receitas de médicos privados, em geral vinculados a planos de saúde. O programa não é barato: em 2007, São Paulo gastou R$ 120 milhões para comprar 200 tipos de medicamento.

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