Título: Transposição vai de 'maluquice' a 'progresso'
Autor: Scarance, Guilherme
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/12/2007, Nacional, p. A12

Obras no São Francisco dividem estudiosos: parte vê reedição da indústria da seca, outra, o desenvolvimento

Se gera dúvidas e conflitos no âmbito político, a transposição do Rio São Francisco não é menos polêmica entre os estudiosos do tema. Uma parte vê uma nova e grave ameaça ambiental, embalada pela reedição da indústria da seca, com prejuízos para a população miserável, que corre o risco de não ver ¿a cor da água¿ prometida pelo presidente Lula. Do outro lado, o raciocínio é oposto: a obra não só levará água para regiões castigadas, como abrirá portas para o desenvolvimento do Nordeste, sem abalos ecológicos e a custo razoável. Um empreendimento arriscado ou um precursor do progresso? Eles não se entendem.

Estudioso da hidrologia do Nordeste há três décadas e da transposição há 13 anos, o engenheiro agrônomo João Suassuna, pesquisador titular da área de ciência e tecnologia da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, é crítico ácido da obra. ¿Tecnicamente, é muito ruim, porque não vai atender aos objetivos: ou seja, abastecer 12 milhões de pessoas¿, afirma. Segundo ele, o principal objetivo será atender ao agronegócio, à irrigação, à criação de camarão e às indústrias. ¿A população que passa sede não vai ver a cor da água.¿

A mesma posição é compartilhada pelo professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Apolo Heringer Lisboa, ambientalista, coordenador-geral do Projeto Manuelzão, que luta pela despoluição do Rio das Velhas e estuda a transposição há 7 anos. ¿É impossível distribuir água do São Francisco para a população difusa, dispersa do sertão¿, assegura. Tanto Lisboa quanto Suassuna dizem que o empreendimento é mais uma faceta da tradicional indústria da seca. ¿Do ponto de vista técnico, é a maior maluquice¿, opina Lisboa.

¿Nos açudes da região tem o equivalente a algo entre 12 e 15 Baías de Guanabara, que não são distribuídas para a população difusa do sertão. Por que os açudes não distribuíram água, se estão lá há 100 anos? Porque é impossível¿, diz Lisboa, frisando que seria preciso comprar ¿milhões e milhões de quilômetros¿ de cano. ¿O governo mentiu ao dizer que daria água para a população que passa sede. A água da chuva e os poços são a única maneira de atender à população difusa.¿ Suassuna endossa: ¿Não vão conseguir.¿

Paulo Canedo, coordenador do Laboratório de Hidrologia da Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), não concorda. ¿O semi-árido precisa de água para o seu desenvolvimento econômico e social¿, diz. ¿A água tem de vir de outro lugar. Um deles é o São Francisco, provavelmente o mais barato.¿ Para ele, quem diz que a água não chegará para a população que passa sede ¿não sabe o que está dizendo¿. ¿Nem está perfeitamente definido como será. Mas a água chegará em muitos locais. Não todos, que é impossível, mas em muitos locais¿, ressalta.

ENERGIA ELÉTRICA

¿É um rio de múltiplos usos. Gera mais de 95% da energia da região¿, destaca Suassuna, citando outro ponto polêmico - as usinas hidrelétricas instaladas ao longo do São Francisco. ¿Essa potência instalada gera, ao ano, 50 milhões de megawatts/hora. Só que estamos crescendo. Nos próximos 10, 12 anos, vamos ter de dobrar. Onde vai ser gerada, se o potencial do rio já está totalmente explorado? E é nesse cenário que querem tirar águas do São Francisco, que já é um rio limitado.¿ Para ele, seria melhor apostar só na revitalização.

Canedo, novamente, discorda. ¿É verdade que cada gota tirada deixa de gerar energia. Mas aí pergunto, o que é melhor? Gerar energia elétrica ou desenvolver o Nordeste? É uma escolha¿, destaca. ¿Precisa dessa energia elétrica ali? O Brasil é interligado. O planejamento pode gerar um pouco mais de energia em outro local e transmitir. Esse argumento, de novo, não tem nexo nenhum. Isso parece coisa de credo. Não tem raciocínio por detrás.¿

O professor da UFMG lembra, ainda, a questão da vazão. ¿Está se propondo uma obra de 127 metros cúbicos por segundo. Dizem que vão usar 1%: 26 metros cúbicos por segundo¿, afirma. ¿Na verdade, a intenção é levar 127 metros cúbicos por segundo. Isso é mais do que o uso real da Bacia do São Francisco.¿ Lisboa cita a vazão ecológica: ¿Se tiro a água toda, não sobra para os animais. Essa vazão ecológica, até há pouco, o governo ignorava.¿

O coordenador do Laboratório de Hidrologia da Coppe/UFRJ contesta. ¿O rio, na sua pior hipótese, num ano de seca monstruosa, uma catástrofe, tem no mínimo 1.830 metros cúbicos por segundo. Eu quero 26. Vai fazer falta?¿, pergunta. ¿Não tem nexo ficar preocupado com isso. É claro que não faz a menor diferença. Nem cócegas faz.¿ Canedo destaca que a revitalização é problema de vários rios do País e a transposição independe desse processo. ¿Aí você pergunta, por que não dar dinheiro para o Tietê?¿

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