Título: Perseguição motivou rede de ajuda
Autor: Arruda, Roldao
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/12/2007, Nacional, p. A5

Grupo internacional, articulado sob manto da Igreja, em São Paulo e no Rio, coincide com período de distensão

No final da década de 70, quando a Operação Condor chegou a seu auge, o Brasil já cruzava o chamado período de distensão política, que resultaria no afastamento dos militares do poder e na restauração da democracia. Essa abertura possibilitou a criação no País das primeiras iniciativas de reação ao terrorismo de Estado então vigor nos países vizinhos.

Sob o manto da Igreja Católica, articulou-se em São Paulo e no Rio uma rede internacional de apoio e solidariedade aos perseguidos políticos. Uma das pontas mais visíveis dessa rede foi o Clamor - modesto boletim de informações que começou a circular em junho de 1978, às vésperas da Copa Mundial de Futebol, na Argentina.

Estimulado pelo cardeal Paulo Evaristo Arns, que cedeu uma sala da sede da Cúria Metropolitana de São Paulo para abrigar a redação, o boletim dedicava-se a coletar e divulgar informações sobre desaparecimentos, torturas, prisões e julgamentos irregulares e outras violações de direitos humanos que atingiram milhares de pessoas na época.

Editado em três línguas (português, espanhol e inglês), em pouco tempo o Clamor tornou-se um ponto de referência para organizações de países vizinhos, onde a repressão era mais intensa do que no Brasil. A casa da Cúria, no número 890 da Avenida Higienópolis, tornou-se um ponto de peregrinação de mães, avós e outros parentes de perseguidos argentinos, chilenos, uruguaios, paraguaios. Representantes da Anistia Internacional, do Conselho Mundial de Igrejas e do movimento Avós da Praça de Maio também passaram a freqüentar o lugar.

LISTA

No ano de 1983 o boletim divulgou a primeira grande lista de desaparecidos na Argentina após o golpe militar de 1976: uma lúgubre fileira de 7.291 nomes, entre os quais 15 brasileiros. Por essa mesma época também listou 61 campos clandestinos de detenção de prisioneiros políticos naquele país.

Entre os fundadores e redatores do boletim encontrava-se Jaime Wright (1927-1999), pastor presbiteriano que se notabilizou pela defesa dos direitos humanos; o advogado e ex-deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh, na época envolvido sobretudo com a defesa de prisioneiros políticos; e Fermino Fecchio, que atualmente é ouvidor da Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

Também fazia parte do grupo a jornalista inglesa Jan Rocha. Como correspondente da BBC ela viajava pelos países da região para fazer reportagens e, paralelamente, coletar informações para o Clamor.

Ela recorda que, além de editar o boletim, o grupo se envolvia em ações de proteção a refugiados. Cita os casos de dois militares, um do Uruguai e outro da Argentina, que romperam com o regime, denunciaram crimes políticos e tiveram que fugir para o Brasil. Como corriam risco de serem alcançados por algum tentáculo da Operação Condor, foram mantidos na clandestinidade em São Paulo até conseguirem meios para deixar o País, em direção à Europa.

O Clamor também articulou as primeiras buscas às crianças tomadas à força das famílias de militantes políticos. O primeiro caso bem-sucedido nesse tipo de investigação foi o de duas crianças, Anatole e Victoria Eva, filhos de um casal de uruguaios, militantes de esquerda, que viviam escondidos em Buenos Aires. Graças ao esquema de colaboração entre as forças de repressão, foram localizados pela polícia uruguaia, que em 1976 atravessou a fronteira, matou os dois militantes e levou seus filhos.

As crianças só foram descobertas três anos depois, abandonadas na cidade chilena de Valparaíso, localizada no outro lado dos Andes. ¿Era evidente a colaboração que existia entre as forças de segurança desses países¿, assinala Jan.

ABRIGOS

O segundo ponto mais importante dessa rede de solidariedade estava localizado no Rio de Janeiro, sob a proteção de outro líder católico, o cardeal Eugênio Sales. Em colaboração com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, ele montou na área da arquidiocese uma série de abrigos, que serviam para manter em segurança fugitivos políticos à espera de asilo na Europa.

A atuação de d. Eugênio, sempre muito discreto, só ficaria conhecida anos mais tarde - a partir de revelações feitas por estudiosos daquele período de terror. Seu colega d. Paulo, por outro lado, não hesitava em denunciar publicamente as violações de direitos humanos. Quando ficou pronta a relação dos desaparecidos na Argentina, o cardeal levou-a pessoalmente a Roma, para entregar ao papa João Paulo II. A Igreja Católica da Argentina nunca chegou a produzir uma lista como aquela.

O nome do boletim clamor surgiu de um salmo bíblico - ¿Inclina os teus ouvidos ao meu clamor¿. Numa época em que repressão no continente atuava como uma multinacional, sem nenhum tipo de limite fronteiriço, ele adotou o lema ¿solidariedade não tem fronteiras¿ e usou como símbolo uma vela acesa.

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