Título: A farsa de Iowa
Autor: Sotero, Paulo
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/01/2008, Espaço A berto, p. A9

Em 1952, a última vez que os Estados Unidos tiveram uma eleição aberta, na qual o presidente ou o vice não concorreram, era impensável que uma mulher ou um negro chegariam um dia à Casa Branca. E a prévia eleitoral do Estado de Iowa estava ainda longe de entrar no mapa político americano.

O favoritismo da senadora Hillary Clinton e do senador Barak Obama na disputa da candidatura do Partido Democrata ilustra o quanto os Estados Unidos mudaram para melhor e se tornaram uma nação mais tolerante e plural no último meio século. Já o peso desproporcional conquistado pelo pequeno Estado de Iowa na largada do processo de seleção dos pré-candidatos desta quinta-feira é revelador das deformações que se acumularam no processo político do país nesse mesmo período.

O tempo, o dinheiro e a energia despendidos pelos 16 pretendentes democratas e republicanos à Casa Branca em busca do apoio dos eleitores de Iowa é inversamente proporcional à importância nacional desse Estado do Meio-Oeste. E os resultados que serão divulgados na disputa entre os democratas não expressarão necessariamente a preferência dos eleitores.

Com uma população quase que totalmente branca num país crescentemente multiétnico, e que soma menos de 2% dos quase 300 milhões de americanos, Iowa seria pouco representativo mesmo se a maioria de seus eleitores participasse da prévia eleitoral. A História ensina, contudo, que não é isso que acontecerá. Nas duas últimas eleições presidenciais, apenas 7% dos votantes registrados se deram ao trabalho de comparecer a um dos 1.784 locais que cada partido, em tese, selecionou para realizar seus caucuses, ou, literalmente, ¿conchavos¿.

Oficialmente, os eleitores de Iowa escolherão os delegados dos dois partidos às respectivas convenções estaduais, previstas para março. Os republicanos usarão o método tradicional. Depois de ouvirem alguns breves discursos e conchavarem a respeito, eles escreverão numa cédula o nome do candidato de sua preferência e seus votos serão tabulados.

Entre os democratas, não haverá votação propriamente dita. Os eleitores formarão grupos em diferentes áreas de cada recinto e serão contados. A fórmula usada para traduzir os totais apurados em delegados dos diferentes candidatos à convenção estadual varia de município para município e é um mistério impenetrável mesmo para os mais calejados especialistas no assunto. A razão é que a direção estadual do Partido Democrata não divulga os totais obtidos pelos candidatos em cada seção. Assim, um resultado que dê 38% das preferências para Obama e 30% a Hillary, por exemplo, não refletirá necessariamente a preferência que os eleitores manifestaram nos caucuses.

A farsa embutida na prévia democrata de Iowa inspira comentários irados na grande imprensa. No último dia 18, três veteranos jornalistas do Estado denunciaram ¿os caucuses antidemocráticos de Iowa¿ em artigo publicado pelo New York Times. Os autores criticaram a falta de transparência do processo e a cumplicidade dos jornalistas com a perpetuação de um evento que é usado pelo partido e por seus candidatos para criar um fato político artificial, que se baseia na sonegação ao público de informações factuais sobre quantos eleitores apoiaram quais candidatos em cada município.

A distorção política gerada pela pseudovotação de Iowa começa, no entanto, muito antes do dia da prévia. Em nome de dar voz a um Estado pequeno no início da disputa presidencial, a prévia condiciona os candidatos a apoiar uma das piores políticas públicas dos Estados Unidos: a concessão de subsídios maciços à produção agrícola, que é hoje o maior obstáculo à conclusão da Rodada Doha e cuja legalidade está sendo contestada pelos governos do Canadá e do Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Isso ocorre porque Iowa é um Estado de economia rural altamente dependente das subvenções federais à agricultura e montou um sofisticado esquema de pressões em Washington para alimentar seu vício, que é garantido pela Lei Agrícola aprovada a cada cinco anos pelo Congresso americano. De acordo com dados oficiais tabulados pelo Environmental Working Group, entre 2003 e 2005 os agricultores de Iowa embolsaram US$ 3,76 bilhões em subvenções federais, ou cerca de 10% do total. Isso ocorreu antes de o presidente George W. Bush propor e o Congresso aprovar uma lei que cria incentivos para multiplicar por cinco, nos próximos dez anos, a produção de etanol de milho e aumentar ainda mais o cacife político de Iowa, que é o maior produtor. É sabido que fabricar etanol a partir do milho não faz sentido do ponto de vista econômico (a produção não se sustenta sem a ajuda governamental) ou energético (consome quase a mesma quantidade de energia que produz) e contribui para a alta de preços dos alimentos.

Politicamente, porém, faz todo sentido para Iowa inaugurar a cada quatro anos a disputa à Casa Branca. ¿Digo há tempos que a prévia de Iowa é um presente à agricultura do Meio-Oeste¿, afirmou recentemente o vice-presidente da Associação Nacional dos Plantadores de Milho, Jon Doggett. Os fatos dão razão a Doggett. Com a única exceção do senador republicano John McCain, todos os candidatos à Casa Branca tidos como viáveis juraram apoio à política federal de subsídios à agricultura, em geral, e ao etanol de milho, em particular, nas últimas semanas e meses. O argumento usado por todos é o da ¿segurança energética¿. Acossada por Obama nas pesquisas, Hillary Clinton passou a celebrar as virtudes do etanol de milho, mesmo depois de ter votado no Senado mais de uma dúzia de vezes contra o programa federal, entre 2001 e 2006. A conversão de Hillary faz da prévia de Iowa um início pouco auspicioso de uma disputa presidencial de cujo desfecho depende, entre outras coisas, a restauração da credibilidade internacional dos Estados Unidos.

Paulo Sotero é diretor do Brazil Institute do Woodrow Wilson International Center for Scholars

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