Título: Legislativo subalterno
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/01/2008, Notas e Informações, p. A3

Entra ano e sai ano, mudam-se governos e partidos no Poder, vêm e vão as crises, mas algo não dá o menor indício de mudança neste país: é o papel secundário que o Poder Legislativo exerce naquilo que deveria ser sua função precípua, ou seja, a de legislar. Por meio de uma delegação de funções tácita, langorosa (que melhor seria chamar de escandalosa), os ilustres representantes do povo, que deste recebem a nobre incumbência de expressar sua voz no espaço público-político, ofertam ao todo-poderoso Executivo sua prerrogativa de fazer leis - tornando-se assim um Poder subalterno, ancilar.

Os dados são acabrunhantes, para os que vêem nas Casas Legislativas o fundamento da democracia representativa. Uma análise dos projetos aprovados pela Câmara e pelo Senado que se tornaram leis neste ano mostra, primeiro, que o Executivo comandou inteiramente os trabalhos, tomando a iniciativa de propor e fazer aprovar 75,8% das leis - enviando 119 dos 157 projetos sancionados.

Segundo, que quase a metade dos 22,9% projetos sancionados, de iniciativa do Legislativo (correspondendo a 36 projetos), foi apenas leis para dar nomes a locais de uso público ou instituir datas comemorativas.

Graças ao trabalho dos parlamentares federais a população passou a dispor, este ano, de novas datas nacionais para serem comemoradas: 6 de junho, Dia Nacional do Teste do Pezinho; 5 de dezembro, Dia da Pastoral da Criança; 4 de outubro, Dia do Agente Comunitário de Saúde; 11 de maio, Dia de Frei Galvão; 27 de setembro, Dia Nacional dos Vicentinos; 6 de dezembro, Dia da Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres; 16 de novembro, Dia dos Ostomizados.

Tem mais: foram criados o Dia Nacional do Fonoaudiólogo, o da Doação de Órgãos, o do Combate ao Trabalho Infantil, além de semanas e anos comemorativos - por exemplo, 2007 foi o Ano Nacional Oscar Niemeyer, em homenagem aos 100 anos do arquiteto, e 2008 será o Ano Nacional Machado de Assis.

Não que se critiquem homenagens a grandes figuras da República ou não se reconheça a importância de alguns fatos que mereçam a lembrança pública. O problema é a disparidade do grau de interesse público entre aquilo que o Congresso transforma em lei e o que deveria ser normatizado com muito maior urgência, por sua relevância.

Há que se considerar, por outro lado, a maneira como o Congresso tem se sujeitado ao entupimento de suas pautas pelas medidas provisórias (MPs) atochadas pelo governo. Levantamento realizado pela liderança do PSDB na Câmara dos Deputados dá conta do impressionante efeito obstrutivo da regra que modificou o mecanismo de tramitação das medidas provisórias - a Emenda Constitucional nº 32, de 2001. A partir dela o Planalto passou a sufocar exponencialmente o trabalho do Legislativo, trancando pautas com o congestionamento de medidas provisórias.

Nos últimos três meses antes da nova regulamentação das medidas provisórias, em setembro de 2001, apenas 2,2% das sessões legislativas ficaram obstruídas. No ano seguinte, nada menos do que 64% das sessões ficaram trancadas em razão da prioridade, concedida pela nova norma, à análise e votação de medidas provisórias.

Mas, se o excesso de MPs expedidas pelo Planalto constitui verdadeira usurpação da função primordial do Poder Legislativo - que é a de produzir normas legais visando à solução de problemas comuns à sociedade que representa por meio do mandato parlamentar -, os legisladores não podem, de forma alguma, eximir-se de responsabilidade pela capitis diminutio que lhes foi imposta. É que teriam eles plenas condições de repudiar e expelir todas as medidas provisórias que chegassem à sua deliberação sem os requisitos constitucionais indispensáveis da urgência e da relevância.

É claro que a enxurrada de medidas provisórias e demais propostas que, vindas do Executivo, atulham o Legislativo, acabam desestimulando até os parlamentares muito bem-intencionados de apresentar projetos importantes, os quais passam a contentar-se em apresentar alterações às MPs. ¿É uma aberração e o pior é que a gente vai se acomodando a essa distorção¿ - disse, a propósito, o deputado Chico Alencar (RJ), líder do PSOL. Sim, sem dúvida, é uma aberração.