Título: A passo de tartaruga
Autor: Aloísio de Toledo César
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/01/2008, Espaço Aberto, p. A2
A condenação à escuridão intelectual que estamos impondo às crianças brasileiras, por falta de melhor escolarização, talvez seja a mais cruel das penalidades, porque atinge não apenas elas próprias, como também o País em que viverão quando se tornarem adultas.
Nem o mais desumano entre os códigos penais conseguiu a proeza de inserir em seu rol de castigos este, tão trágico e perene, que acompanha as crianças desde os seus primeiros dias na escola até o fim da vida delas.
A ignorância, nada surpreendente, que o mundo exterior começa a conhecer de nosso país deve ser motivo de vergonha para nós todos, mas, especialmente, para os governantes, que se mostram preocupados em olhar mais para o próprio umbigo do que para a nossa realidade, extasiados com eles mesmos e propagando a toda hora, fundados em estatísticas bem manipuladas, que Deus é brasileiro e o Brasil caminha às mil maravilhas.
Numa visão das mais frias, forçoso é reconhecer que o Brasil de hoje já é a clara conseqüência do descaso com que foi tratada a educação desde décadas atrás. Quem não vê que a ação governamental para enfrentar esse desafio caminha a passos de tartaruga?
A coragem com que a Coréia do Sul, destroçada por uma guerra, se dispôs a resolver o problema - e o resolveu - deveria ser um exemplo para os nossos governantes. É incrível que essa experiência fantástica, que em pouco tempo transformou aquele país, antes tão atrasado como o nosso, em nova potência econômica do mundo não seja aproveitada no Brasil.
É igualmente trágico verificar o desperdício da avançada tecnologia para a educação, emergente das universidades e de pesquisadores dedicados, que soçobra e mofa nas gavetas dos gabinetes.
Apesar dos esforços para propagar otimismo e causar a impressão de que o nosso crescimento econômico é solução para tudo, resta evidente que o enriquecimento do País será desfrutável por poucos, ou seja, por aquela parcela da população que teve a sorte de receber melhor formação escolar e se preparar para o mercado de trabalho.
Enfim, não pode estar bem um país onde a grande maioria das pessoas vive na escuridão de conhecimentos, prestando-se, sem ter consciência disso, a sufragar nas eleições políticos que acabam rivalizando nas manchetes com os piores criminosos.
Cidadãos instruídos não se deixam iludir por alguns trocados mensais que o populismo distribui para anestesiar as consciências. Cidadãos instruídos percebem claramente o que significou a absolvição, pelo Congresso Nacional, do senador Renan Calheiros. Cidadãos instruídos condenam e não se conformam com a escalada da corrupção e com o silêncio cúmplice dos governantes, que alegam nada saber e fingem estar trabalhando para contê-la.
A falta de educação escolar, enfim, é uma peste das mais graves, porque, além de contaminar irremediavelmente a formação intelectual das crianças, com reflexos amargos na vida de cada uma delas, afeta o País como um todo, humilhando-nos perante o mundo civilizado.
As notícias de que nossas crianças não conseguem aprender Matemática e mal conseguem ler, após alguns anos de vida escolar, propagam no exterior uma imagem brasileira de vergonha. O nosso atraso na área é pior que o dos nossos mais pobres vizinhos.
Essa falta de escolaridade, para maior tristeza de todos nós, desde já resulta na presença em quadros de governos de pessoas que são elas próprias vítimas desse sistema e, por isso mesmo, parecem não conseguir distinguir a necessidade de mudar.
A ridícula escolaridade dos brasileiros é tão contagiante, e tão coletiva, que o único candidato a presidente da República a fincar seu programa de governo na educação, no último pleito, acabou tendo votação igualmente ridícula.
Por ser um problema tão grave e tão presente, era de esperar que os atuais governantes acenassem com a esperança de que vão enfrentá-lo. Mas, numa demonstração de que parece haver interesse em manter na ignorância essa massa facilmente manipulável, as prioridades são outras.
Aliás, pelo que se vê a toda hora, não há prioridade alguma no atual governo, a não ser a de concentrar os esforços no trabalho de apagar as fogueiras dos sucessivos e repetitivos escândalos. Nem mesmo os buracos das rodovias federais, que provocam desastres e mortes todo dia, surgem como prioridades, porque - também a passo de tartaruga - a ação para tapá-los está relegada para daqui a uns seis meses. Parece exagero, mas é a pura e sofrível verdade.
O recado que advém desse desdém é o velho ¿danem-se os que morrem nos desastres, danem-se os que não sabem ler nem escrever¿.
Humilhados como nós todos, porém certamente mais sofridos, estão os professores, com sua vida aviltada por vencimentos medíocres, que desencorajam o exercício de profissão tão nobre.
Até cerca de 30 anos atrás, pelo menos no Estado de São Paulo, os professores recebiam vencimentos apropriados a uma vida digna. Era natural, então, que o magistério alcançasse melhores resultados na difícil missão de transmitir conhecimentos.
De lá para cá houve o progressivo aviltamento da atividade, não só quanto aos vencimentos, como também em relação ao sistema de ensino, que foram compelidos a aplicar, com a compulsória e coletiva aprovação, nos finais do ano escolar, de todos os alunos, sem aferir o avanço de conhecimentos de cada um.
Sem dúvida alguma, essa desastrosa orientação representou um desestímulo, porque difundiu a idéia, lamentavelmente verdadeira, de que ensinar ou não ensinar dava no mesmo. Suas conseqüências foram graves no mais rico e desenvolvido Estado brasileiro.
Aloísio de Toledo César é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
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