Título: Invasão de privacidade
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/01/2008, Notas e Informaçoes, p. A3

As medidas adotadas pela Receita Federal para fiscalizar as operações financeiras após a extinção da CPMF, obrigando os bancos a repassar dados sobre cidadãos e empresas que movimentarem semestralmente mais de R$ 5 mil e R$ 10 mil, respectivamente, em conta corrente ou poupança, primam por dois graves equívocos - um de caráter político e outro de natureza jurídica.

Em vigor desde 1º de janeiro, essas medidas foram impostas por meio de uma instrução normativa publicada no Diário Oficial de sexta-feira, regulamentando um artigo da Lei Complementar 105, sancionada em 2001, que trata do sigilo das operações de instituições financeiras e do acesso a informações bancárias por parte de diferentes órgãos do Executivo, como o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e a Advocacia-Geral da União (AGU).

Durante a votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que previa a prorrogação da CPMF, a Receita alegou que, sem o recolhimento dessa contribuição, ela não teria condições de identificar sonegadores. Já se sabia que a justificativa não era verdadeira, uma vez que o órgão dispunha de alternativas para coibir a evasão fiscal. Como as novas medidas vão muito além das operações financeiras convencionais, como lançamentos a débito, saques e pagamentos por meio de cheque - envolvendo também lançamentos a crédito e informações sobre aquisição e venda de ações nas bolsas de valores, no mercado futuro e no mercado de opções e sobre compra de moeda estrangeira e remessa de divisas ao exterior -, o poder de fiscalização das autoridades fiscais, em vez de diminuir, aumenta ainda mais.

Segundo o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, essa é uma ¿prova inequívoca¿ de que o governo não precisava da CPMF para combater a sonegação. O deputado Paulo Bornhausen (SC), vice-presidente do Democratas, foi mais contundente. ¿Essa é mais uma mentira do governo que cai¿, afirmou, após lembrar que o presidente Lula chegou a chamar de ¿sonegadores¿ aqueles que defendiam o fim da contribuição.

Além da flagrante contradição da Receita - um erro político que deu mais munição para a oposição e para os críticos da CPMF -, as medidas adotadas pelo órgão fiscalizador colidem frontalmente com o direito ao sigilo previsto pela Constituição no capítulo das garantias fundamentais. A violência jurídica é tão grande que o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), já afirmou que a corte, se for acionada, derrubará a instrução normativa que obriga os bancos e demais instituições financeiras a repassar semestralmente dados sobre as movimentações de seus clientes. Segundo ele, as medidas da Receita invertem o ônus da prova, jogando os contribuintes na vala comum, como se todos fossem sonegadores. ¿Salta aos olhos o conflito com a Constituição. No afã de arrecadar, não se pode agir a ferro e fogo. Vejo a decisão do governo como um menosprezo (à jurisprudência do STF) e isso não é bom para o aprimoramento democrático. Não é por aí que teremos dias melhores. A instrução é flagrantemente inconstitucional. Não tenho a menor dúvida de que ela será invalidada. Conheço o Supremo como ninguém¿, concluiu.

Em resposta, a Receita alegou que as medidas por ela baixadas têm por base a Lei Complementar 105 e que a obrigatoriedade de repasse de informações sobre movimentações financeiras já é aplicada às empresas administradoras de cartões de crédito. O que as autoridades fiscais não disseram, contudo, é que há três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) contra essa lei tramitando no STF - todas com grandes probabilidades de serem julgadas procedentes, como diz o ministro Marco Aurélio. E uma nova Adin, esta contra a instrução normativa publicada pelo Diário Oficial da última sexta-feira, deverá ser impetrada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), como anunciou o tributarista Vladimir Rossi Lourenço, vice-presidente da entidade.

Independentemente do desfecho dessas ações na mais alta corte do País, o fato é que essas medidas dão ao governo meios de devassar a vida de todas as pessoas e empresas, sem exceção e sem justificativa legítima. A simples existência desse instrumento coloca em risco as liberdades essenciais.

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