Título: O movimento que freou o venezuelano
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2008, Internacional, p. A15
Enrique Krauze*
Se Hugo Chávez sonha em transformar a Venezuela numa Cuba com petróleo, os venezuelanos que se opõem a ele descobriram o antídoto perfeito: o movimento estudantil. Na ocasião do referendo de dezembro sobre os esforços de Chávez para reescrever a Constituição, conheci alguns chamos, como são conhecidos os estudantes ativistas. O que me impressionou não foi apenas sua eficiência, mas também o fato de seu movimento ser diferente de quase todos os numerosos predecessores na região.
O ponto mais importante é que os venezuelanos não pedem a revolução socialista, e sim a democracia liberal. Em vez de defender as ideologias intervencionistas do século 20 ou as paixões românticas do 19, eles adotaram o humanismo clássico do século 18. ¿Nossa luta é histórica¿, disse-me Yon Goicoechea, estudante de direito da Universidade Católica Andres Bello e um dos líderes do movimento político, quando nos reunimos, ao lado de oito de seus colegas dirigentes, na sede do jornal El Nacional.
Nas palavras de Goicoechea, ¿como Martin Luther King, não lutamos contra o homem, lutamos para garantir os direitos civis e humanos para todos na Venezuela¿.
Como os radicais que os precederam, eles têm uma preocupação autêntica com os pobres. Mas também cultivam planos concretos para desenvolver seu país e encarnam uma esperança de reconciliação da sociedade venezuelana, brutalmente dividida.
Há muito tempo os movimentos estudantis são um fator decisivo na política latino-americana. O primeiro surgiu em Córdoba, Argentina, em 1918, com o ideal aparentemente inocente da ¿autonomia universitária¿. Em 1921, um Congresso Internacional de Estudantes reuniu-se no México; um de seus objetivos era organizar um repúdio continental do ditador da Venezuela, Juan Vicente Gómez. Em 1928, estudantes venezuelanos tentaram derrubá-lo. Eles fracassaram, mas seu movimento formou a geração responsável pelo pacto democrático que, apesar das muitas deficiências e descontinuidades, tanto desagrada a Chávez hoje.
Àquela altura, contudo, quase todos os movimentos estudantis (no México, Cuba, e outros países) estavam fascinados pela revolução russa. Os estudantes queriam ser como Sachka Yegulev, o jovem idealista do romance de mesmo nome de Leonid Andreyev que sacrificou sua vida pela liberdade. No entanto, ao chegar ao poder, todos eles - incluindo Rómulo Betancourt, o líder estudantil de 1928 que se tornou o pai da democracia venezuelana nos anos 40 - escolheram outro modelo russo: Lenin.
Essa idéia, é claro, foi encarnada com mais eficácia em 1959 por Fidel Castro. A revolução cubana foi um divisor de águas: duas gerações de revolucionários (estudantes universitários radicalizados, e não trabalhadores ou camponeses) sonharam em seguir o exemplo de Fidel e ficaram ainda mais encantadas com Che Guevara. Essa tendência radical - ao lado de sua conseqüência natural, o antiamericanismo feroz - foi ainda mais encorajada pelo golpe de 1973 contra Salvador Allende no Chile. O resultado foi trágico: dezenas de milhares foram mortos na Argentina e no Chile pelos ditadores militares.
Em meio à tragédia, no entanto, ocorreu um processo de amadurecimento. No início dos anos 80, os baby boomers politicamente ativos na América Latina dividiram-se entre a revolução sangrenta e a mudança interna do sistema. No México, alguns veteranos do movimento dos anos 60 começaram a compreender o valor da democracia liberal e, pela primeira vez, a propuseram como uma alternativa viável ao Partido Revolucionário Institucional (PRI).
No fim dos anos 90, a maior parte dos ditadores direitistas da América Latina havia sido expulsa do governo pelo voto, não pelas armas. Os movimentos guerrilheiros perderam a aura utópica. A América Latina é a região do eterno retorno ao passado. Uma ameaça grave foi necessária para ressuscitar o Sachka Yegulev interior dos estudantes. Precisou ser algo que desafiasse não só seu futuro profissional, mas também a viabilidade da democracia de uma nação. Esse perigo ficou claro no projeto de Chávez, expressado por sua expressão predileta, ¿socialismo ou morte¿.
Então veio a tentativa de Chávez de adquirir poder quase absoluto por meio do referendo de dezembro. Os estudantes responderam com assembléias, oficinas, passeatas, boletins, panfletos e campanhas por telefone e e-mail, tudo para fazer os venezuelanos comuns entenderem que a abstenção seria suicídio. ¿Para provar que eles desprezaram seu voto, você precisa votar¿, disse repetidamente Goicoechea, o estudante de direito, para um público cético. ¿Não impediremos a fraude eleitoral ficando em casa na frente da TV.¿
Chávez tentou denegrir os líderes estudantis chamando-os de ¿filhinhos de papai¿ e ¿lacaios dos imperialistas¿. Mas isso não fazia sentido: os estudantes vinham principalmente das classes médias e alguns dos mais populares tinham origem pobre, incluindo Ricardo Sánchez, o líder do grêmio estudantil da Universidade Central. Foi por isso que, dessa vez, a população urbana mais pobre discordou de seu amado líder, votando em massa contra Chávez.
A história o mostrará que os estudantes foram um fator decisivo na resistência a Chávez. Impressionou-me uma mensagem de texto que um dos líderes estudantis enviou a um colega naquela noite: ¿Estou assustado, mas a liberdade é tão valiosa quanto a vida.¿ Eles formarão um novo partido político? Serão capazes de se manter unidos? Seu inimigo é formidável e os riscos de uma conclusão violenta ou mesmo trágica são altos. No entanto, ao slogan de Chávez, ¿socialismo ou morte¿, eles respondem: ¿liberdade e vida.¿ Na guerra de palavras, é possível que os estudantes estejam em vantagem. Talvez eles possam tirar esperança de uma frase do poeta-diplomata mexicano Octavio Paz: ¿Precisamos devolver a transparência às palavras.¿ TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA
*Enrique Krauze é editor da revista `Letras Libres¿ e autor de `Mexico: Biography of Power¿ (México: Biografia do Poder)
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