Título: África estável depende de paz no Quênia
Autor: Ramos, Graça
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2008, Internacional, p. A18

País funciona como escoadouro da produção de vários países vizinhos que têm economia atrelada à queniana

Os esforços internacionais para obter um acordo de paz no Quênia estão relacionados à posição estratégica que o país ocupa na África. Como a economia de várias nações africanas tem relação direta com a queniana, o agravamento da crise seria desastroso para o continente.

Por isso, para muitos diplomatas, governo e oposição precisam chegar a um acordo que ponha fim à onda de violência, iniciada na semana passada após o anúncio da reeleição do presidente, Mwai Kibaki, que deixou mais de 300 mortos.

O Quênia é o principal entreposto comercial do oeste africano. As importações e exportações de países vizinhos como Ruanda, Uganda, Burundi e República Democrática do Congo transitam pela estrada que liga o Lago de Vitória, no centro do continente, à cidade de Mombasa, porto às margens do Oceano Índico.

Além disso, 40% das exportações quenianas são direcionadas para o próprio continente, o que torna o bem-estar da região dependente da estabilidade política no Quênia.

INFLAÇÃO

O conflito deflagrado pela reação da oposição, liderada por Raila Odinga, à reeleição de Kibaki, fez subir o preço do gás, da gasolina e dos alimentos em vários países da região, uma vez que as principais ligações viárias foram interrompidas por manifestantes. Os alimentos em Nairóbi, capital do Quênia, já estão duas vezes mais caros do que antes da crise.

Metade dos 36 milhões de quenianos vive abaixo da linha da pobreza, a taxa de desemprego é de 40% e a expectativa de vida não passa de 49 anos. A renda per capita, de US$ 580, é quase o dobro da vizinha Tanzânia, mas oito vezes menor que a do Brasil.

TURISMO

Apesar dos péssimos indicadores, a economia vinha se fortalecendo com a estabilidade política desde a independência, em 1963. Tanto que o país sempre foi considerado um exemplo para os vizinhos, constantemente envolvidos em sangrentos conflitos étnicos.

O PIB do Quênia é de US$ 21 bilhões, dos quais US$ 1 bilhão vem do turismo, um dos setores mais afetados pela violência da última semana. As operadoras suspenderam quase todos os pacotes e muitas reservas, já pagas, foram canceladas.

A violência afetou também o funcionamento de um dos principais órgãos da ONU. É no Quênia que está a sede do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), e de onde partem as principais definições a respeito das políticas ambientais implantadas em todo o mundo.

Os projetos do Pnuma buscam incentivar a prática do desenvolvimento sustentado e, muitos deles, são implementados nos parques nacionais quenianos, que até então eram bem-estruturados, harmônicos e preocupados em envolver a população local.

Berço de algumas das mais belas reservas naturais do planeta, o Quênia permitiu que inúmeras empresas estrangeiras instalassem hotéis de luxo em seus parques nacionais. Na última semana, esses resorts ficaram completamente vazios.

Muitas ONGs ligadas ao meio ambiente estão preocupadas com a repercussão ambiental de um conflito generalizado no Quênia.

O agravamento da violência poderia afetar, por exemplo, o ecossistema do Parque Serengeti, localizado na fronteira com a Tanzânia. É neste parque que ocorre a maior migração de fauna do mundo. Ao longo do ano, famílias de animais se locomovem em busca de melhores locais para se alimentar e procriar.

Na área, vivem também os massai, uma das tribos mais antigas da África e altamente resistente à aculturação.

Eles permanecem nômades e vivem sem barreiras burocráticas, entre as fronteiras do Quênia e da Tanzânia. Pastoreiam suas vacas e cabras e são vistos como guardiães do ecossistema da região. Muitos ambientalistas temem que a conflito possa se espalhar e afetar a vida das tribos.

REFUGIADOS

Outro fator que preocupa a comunidade internacional é o confronto entre a etnia kiluyu, dos partidários do presidente Kibaki, que representam 22% da população do país, contra os luo, terceiro maior grupo étnico do Quênia, do qual faz parte o líder oposicionista Raila Odinga - ao todo, o país é formado por 42 etnias.

A ironia é que o Quênia sempre funcionou como local de abrigo para refugiados de países que experimentaram os transtornos de genocídios étnicos em grande escala como Somália, Serra Leoa e, em especial, Ruanda.

Após o conflito étnico entre tutsis e hutus em Ruanda, em 1994, foi no Quênia que a maior parte dos ruandeses buscou proteção. Agora, a população queniana desespera-se em direção oposta, rumo às fronteiras dos países vizinhos, assustando essas nações.

Outras pontes de integração africana ficaram ameaçadas pelo conflito. No próximo dia 20, em Gana, começa a Copa da África de futebol, competição mais importante do continente. A seleção de Camarões, uma das favoritas para conquistar o torneio, havia decidido realizar sua preparação no até então tranqüilo Quênia, mas anunciou a mudança de local tão logo se iniciou a barbárie.

BOLSA DE VALORES

O cenário desolador de guerra civil repercutiu mal também na bolsa de valores, que caiu 5% em menos de 24 horas. Na quinta-feira, diante da possibilidade de conflitos ainda mais sangrentos, a Nairobi Stock Exchange (NSE) suspendeu as negociações de títulos e câmbio. A medida criou sérias dificuldades para a realização de negócios entre os países vizinhos.

Ainda é cedo para saber se os esforços internacionais pela conciliação darão resultado. Contudo, diferentemente de outros conflitos que se desenrolam na África, por causa de seu importante papel no equilíbrio regional no oeste do continente, a estabilidade da região depende de uma solução para o impasse político no Quênia.

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