Título: 'O ajuste fiscal se faz crescendo'
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2008, Economia, p. B6

RITMO DO PIB: ¿Investimento sempre leva a mais investimento. Com mais gente empregada, vem mais consumo¿

CRISE NOS EUA: ¿Países desenvolvidos são pragmáticos e não acham que o mercado resolve a situação sozinho¿

FIM DA CPMF: ¿Quem diz que as medidas afetam o crescimento são os que não querem corte da Selic¿

Fernando Dantas

O novo diretor de Estudos Macroeconômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), João Sicsú, avalia que as medidas para compensar o fim da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), como a elevação das alíquotas do IOF e o aumento da CSLL das instituições financeiras não vão reduzir a oferta de crédito nem desacelerar a economia, que deve se manter no mesmo ritmo de 2007. Para ele, não há maiores riscos para as contas públicas, mesmo sem a CPMF, se o País continuar crescendo.

Sicsú defende que o Estado brasileiro contrate milhares de médicos, professores, policiais, fiscais e engenheiros e os remunere bem para que permaneçam no setor público. Para ele, o gasto com o funcionalismo em atividades-fim deveria ser considerado investimento. A melhor forma de obter o ajuste fiscal, diz Sicsú, é fazendo a economia crescer, o que amplia receitas.

Segundo o economista, o choque nos preços dos alimentos, principal ameaça inflacionária do momento, parece estar dissolvido. Preocupado com a valorização do real, ele afirma que os juros baixos são a melhor forma de controlar os fluxos de capitais.

Conhecido por posições heterodoxas e desenvolvimentistas, o economista pensa que o BC pode ser auxiliado no controle da inflação por outros organismos. Cita como exemplo o Ministério da Agricultura, que pode adotar medidas preventivas de incentivo ao investimento setorial para evitar desequilíbrios entre oferta e demanda.

Em entrevista ao Estado, por meio de uma extensa troca de e-mails (condição que impôs), Sicsú preferiu não comentar o afastamento do Ipea de quatro economistas (entre os quais Fabio Giambiagi e Régis Bonelli), que classificou como medida exclusivamente administrativa. Ex-assessor parlamentar do senador Marcelo Crivella, Sicsú nega que sua indicação para o cargo de diretor do Ipea tenha tido qualquer conotação política. A seguir, a entrevista:

Quais as perspectivas de crescimento para 2008?

O Brasil pode, em 2008, manter a rota de crescimento iniciada em 2007. Há uma característica muito importante do crescimento do ano passado: de forma contínua, a taxa de crescimento do investimento tem sido mais do que o dobro da taxa de crescimento do PIB. Esse tipo de crescimento produz mais crescimento, porque origina à frente mais investimento e mais consumo. O investimento inicial sempre leva a uma segunda geração de investimentos; e com mais gente empregada, vem mais consumo. Para 2008 ainda há as obras do PAC, que apenas começaram em 2007. A conseqüência é que o desemprego caiu para a menor taxa histórica e as rendas dos ocupados têm crescido.

As medidas para compensar o fim da CPMF podem elevar o custo de crédito, fazendo com que seu crescimento seja mais lento? Isso pode afetar as boas perspectivas de crescimento da economia?

Como previmos em nossa Carta de Conjuntura lançada logo após a derrota da CPMF no Senado, o governo provavelmente adotaria uma combinação de corte de gastos, elevação de tributos e redução do superávit primário, cumprindo apenas a meta estabelecida. As medidas adotadas são corretas e já eram esperadas. Não vão afetar a oferta de crédito que manterá o seu ritmo de crescimento. Logo, não vão afetar o ritmo de crescimento da economia. Mas há algo de muito curioso no ar. Os analistas que dizem que as medidas vão afetar o crescimento e, portanto, que as medidas foram negativas, são aqueles mesmos que defendem que o Banco Central não deve reduzir a taxa de juros básica porque a economia está superaquecida. Afinal, o que eles querem?

Quais podem ser os impactos no Brasil da crise nos Estados Unidos, com desaceleração e ameaça de recessão?

O Banco Central americano tem jogado um papel fundamental ao ampliar a liquidez e reduzir a taxa de juros básica da economia, para impedir a contaminação da esfera financeira sobre o lado real. No pior cenário, pode acontecer uma recessão nos Estados Unidos. Isso é possível, mas não é o mais provável. Os dirigentes de bancos centrais e governantes de países desenvolvidos são pragmáticos, não são ideólogos. Eles não confiam em que as forças de mercado sejam capazes de contornar sozinhas a situação. Estão fazendo a mão visível do Estado agir, seja nos Estados Unidos, seja na Europa e até no Japão. Alguma retração de crédito haverá nos Estados Unidos, mas seus efeitos sobre o lado real da economia devem ocorrer somente no segundo semestre, quando o rumo do nosso crescimento já estará consolidado. Não há como estabelecer uma probabilidade para ocorrência de uma recessão nos Estados Unidos. Todo economista sabe que o futuro é incerto no sentido de que é impossível conhecer todos os eventos futuros e associar a cada um deles probabilidades de ocorrência.

O senhor teme a volta da inflação no Brasil?

Temo a volta da inflação com a mesma intensidade que temo a volta de taxas mais elevadas de desemprego. A inflação do ano de 2007 foi baixa, é provável que tenha ficado abaixo da meta de inflação, ou seja, tivemos menos inflação do que esperávamos ter. E tivemos mais crescimento do que muitos analistas esperavam no início de 2007, quando previram um crescimento máximo de 3,5%. As notícias econômicas são muito boas. Com relação à inflação de 2007, o que chama a atenção é que houve uma aceleração causada pela alta de preço dos alimentos. Basicamente, foram os preços do leite e derivados, cereais e leguminosos (soja e feijão) e carnes. É óbvio que houve um aumento generalizado dos preços dos alimentos, inclusive o chuchu, mas o chuchu, a batata-inglesa, a mandioca não têm peso significativo para o cálculo do IPCA.

Como o senhor vê a possibilidade de que o Banco Central mantenha por um período prolongado a taxa Selic no atual nível, ou até mesmo a eleve, por causa dos riscos inflacionários no Brasil?

Segundo a teoria de política monetária do regime de metas de inflação, a taxa de juros deve ser elevada quando existe inflação de demanda ou quando um choque de oferta pode ser capaz de irradiar uma alta generalizada de preços pelo conjunto da economia. Se é esperado que um choque de oferta tenha seu efeito dissipado, não seria necessário elevar a taxa de juros. Portanto, a primeira questão a ser analisada é se existe inflação de demanda. Não existe excesso de demanda por enquanto e os investimentos que a economia vêm realizando aumentam a capacidade de oferta de produtos. Ainda por cima, haverá mais infra-estrutura, o que aumenta a produtividade e reduz os custos de toda a economia. A segunda questão é saber se o choque de preços dos alimentos tem capacidade de espalhar seus efeitos pelos demais produtos da economia. Parece que não. Parte dos preços dos alimentos tende a se reduzir ou a parar de aumentar. Em relação ao feijão, houve problemas climáticos e redução da área plantada. O aumento do preço da carne foi causado pelo aumento do preço dos grãos que compõem a ração, soja principalmente. Em relação à soja, houve quebra de safra na China e a safra brasileira terá início em fevereiro. O preço do leite já está tendendo à sua média dos últimos três anos. O choque interno dos preços dos alimentos parece, portanto, dissolvido.

O senhor é favorável ao regime de metas de inflação na forma como hoje funciona no Brasil?

Gostaria de comentar esse assunto `em tese¿. É uma das minhas áreas de estudo. Sou favorável a que qualquer governo tenha uma meta para a inflação. Avalio que a tarefa de controlar a inflação é tão importante que o Banco Central deveria ser auxiliado nesse esforço. A estabilização dos preços é um grande ativo de uma sociedade e quem deveria zelar por ele poderia ser um conjunto de organismos públicos auxiliando o Banco Central. Controlar a inflação não é tarefa fácil. E é responsabilidade excessiva para um único órgão que somente tem um instrumento nas mãos, a taxa de juros, para cuidar do tema. Penso, por exemplo, que se a causa da inflação tem sido a alta dos preços dos alimentos, o Ministério da Agricultura poderia apresentar um relato minucioso, um diagnóstico da situação e apresentar as suas perspectivas para o problema. Eventualmente, a solução poderia ser simples e evitaria que o Banco Central aumentasse a taxa de juros. Assim, se evitaria que o Banco Central fosse tratado como vilão, como o órgão que eleva os juros e trava a economia. O Banco Central tem de ser visto pela sociedade e pelos formadores de opinião como um organismo `do bem¿.

Como seria essa contribuição de outros organismos ao Banco Central, como no caso do Ministério da Agricultura?

O mais importante seria o diagnóstico do choque, sua intensidade e extensão, assim como medidas preventivas de incentivo ao investimento setorial para evitar desequilíbrios entre oferta e demanda.

Como o senhor vê a valorização do real e a redução do superávit em conta corrente (com projeções de déficit em 2008)? O senhor concorda com a prescrição do economista Luiz Carlos Bresser-Pereira de impostos sobre a exportação de matérias-primas como soja e minério de ferro?

Vejo com muita preocupação a valorização do real. O câmbio foi valorizado porque houve entrada avassaladora de capitais financeiros durante o ano de 2007. Enquanto entre janeiro e outubro de 2006 entraram de forma líquida no País US$ 4,5 bilhões, no mesmo período de 2007 entraram quase dez vezes mais: US$ 23 bilhões foram para fundos de renda fixa. Em primeiro lugar, o País precisa ser menos atrativo do ponto de vista financeiro ao capital externo. Um caminho conhecido pelos países asiáticos para fazer isso é manter a trajetória de redução da taxa de juros. É também preciso impor alíquota sobre determinados produtos importados, tal como o governo já fez no ano passado. E também é necessário incentivar a industrialização por meio da isenção de impostos para exportação de produtos manufaturados, deixando os impostos sobre o que é básico. Aliás, já existem alguns projetos no Senado que fazem essa proposta. Será delicada a situação de termos novamente saldo negativo em transações correntes - o superávit nessa conta é uma defesa contra ataques especulativos que não é desprezível.

O senhor é favorável a algum tipo de controle de capitais?

O mais importante mecanismo de controle sobre a entrada de capitais é, como disse, ter uma taxa de juros baixa. É assim que os asiáticos controlam ou evitam a entrada que valorizaria excessivamente o câmbio.

Qual sua visão sobre o papel do Estado na atual fase do desenvolvimento econômico do Brasil? Como vê a questão do tamanho do funcionalismo e seus níveis de remuneração?

O Estado já mostrou sua necessidade para promover justiça social e desenvolvimento. A participação ativa do Estado tem se mostrado útil tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento. Para cumprir essa função, o Estado brasileiro precisa contratar milhares de servidores, principalmente médicos, professores, policiais, fiscais e engenheiros. E pagar bons salários para que permaneçam como servidores públicos. A despesa com a contratação de funcionários que atuam em atividades-fim deveria ser considerada investimento público. Aumentar a despesa com a contratação do funcionalismo não causa problemas fiscais. O equilíbrio orçamentário está sendo alcançando porque está havendo crescimento. A relação dívida/PIB e o déficit nominal estão se reduzindo. Não se equilibra orçamento cortando gastos quando uma economia está semi estagnada. O resultado fiscal de uma economia é apenas o sintoma, o motor é o crescimento. A fórmula é simples: o crescimento propicia equilíbrio fiscal e a estagnação leva necessariamente ao aumento dos déficits.

Quais as mudanças que estão sendo implementadas no Ipea? O que significa fazer a instituição voltar-se mais ao longo prazo?

O Ipea tem uma missão original que é pensar o longo prazo. Isso significa que o Ipea é uma instituição que deve pensar o País que queremos e também deve pensar as linhas gerais de trajetórias de desenvolvimento. As mudanças que estão em curso no âmbito da Diretoria de Estudos Macroeconômicos estão a serviço dessa concepção. Por exemplo, abordamos a conjuntura porque precisamos estar em dia sobre o que ocorre no Brasil. Mas não desenvolvemos essa atividade para realizar intervenções: o Ipea é uma instituição de pesquisa e assessoramento do governo, não faz política econômica. Queremos acumular conhecimento sobre a realidade brasileira para poder pensar o desenvolvimento. Queremos aprender a fazer a ligação entre conjuntura e trajetórias de desenvolvimento. Queremos organizar e reativar o debate que estava esquecido. Não existe um único pensamento de como o País deve ser governado. Queremos organizar o dissenso. Vamos lançar dois livros neste ano que iniciarão um processo organizado de debate sobre assuntos da macroeconomia.

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