Título: Propagandas infantis
Autor: Bucci, Eugênio
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/01/2008, Espaço Aberto, p. A2

Criancinhas em comerciais de TV não costumam falhar. Vendem de tudo. Dão certo em propagandas de automóveis, de produtos alimentícios e até mesmo de brinquedos. Encarnando atributos valiosos no ramo publicitário, como pureza de espírito, ausência de malícia e espontaneidade, elas inspiram confiança na freguesia.

Não se pode dizer que os políticos desfrutem da mesma imagem. A política se move por mecanismos bem mais adultos e requer de seus praticantes, além de pragmatismo, uma boa dose de talento teatral. Bons políticos são aqueles que conseguem sorrir em situações em que uma criança cairia em prantos - e que ousam verter lágrimas compungidas quando a gente sabe que gargalham por dentro. Vistos como dissimulados, inspiram mais cautela que credulidade entre os cidadãos, o que não é ruim: do ponto de vista do eleitor, a cautela ajuda.

Ocorre que, às vezes, os profissionais da política não se conformam e para tocarem de perto o coração dos comuns tentam se valer das criancinhas. Foi o que se viu em dezembro, num filme institucional da Prefeitura de São Paulo, que foi ao ar inclusive em intervalos do Jornal Nacional. Tinha um minuto de duração. A protagonista e narradora do filme é uma garotinha, apenas uma garotinha. Transcrevo, a seguir, o que ela diz.

¿Já tá chegando o Natal e o fim do ano. Como diz a minha mãe, aconteceu tanta coisa que a gente nem viu o ano passar. Teve a escola nova (entram as primeiras legendas sob as imagens: ¿104 novas escolas¿), a gente estudou mais (legendas: ¿1 hora a mais na escola¿ e ¿Dois professores em sala de aula¿), fez prova, brincou no clube depois da aula (legenda: ¿Clube-escola¿), teve até exame médico na escola! (Legenda: ¿Aprendendo com saúde¿) Eu ganhei um irmãoziiinho... (Legenda: ¿Mãe Paulistana¿.) Já a minha avó ficou doente. (Legenda: ¿Novo Hospital em Cidade Tiradentes¿.) Foi para o hospital e sarou, mas ainda toma remédio todo dia. (Legenda: ¿Programa Remédio em Casa¿.) Meu tio também teve problema de saúde, mas já tá bom. (Legenda: ¿Dois milhões de atendimentos nas AMA¿.) Meu pai arrumou um empreeego! (Legenda: ¿Centro de Apoio ao Trabalhador¿.) A gente mudou para um apartamento novinho, com bastante lugar para brincar. (Legenda: ¿O maior programa de Habitação Popular e Urbanização de Favelas do Brasil¿.) Eu tô achando até a cidade diferente (legenda: ¿650 quilômetros de ruas asfaltadas¿), mais bonita... (Legenda: ¿Cidade Limpa¿.) Só sei que daqui a pouco começa o ano tuuudo de novo. (Nessa passagem, a câmera faz um close na menininha colando uma árvore de Natal recortada em cartolina verde na vidraça de seu apartamento novo.) Ainda bem, né?¿

Em seguida, entra a voz do locutor oficial: ¿A Prefeitura de São Paulo trabalhou duro para que você pudesse viver numa cidade melhor. Os resultados mostram que estamos no rumo certo.¿ Sobe o brasão da Prefeitura, ao som do slogan final: ¿Prefeitura da cidade de São Paulo, trabalhando por uma cidade melhor.¿

Claro que escalar uma pré-adolescente para fazer comício a favor do prefeito não é lá o melhor exemplo de respeito à infância. Por não compreenderem os alcances contraditórios do discurso político, as crianças - que não se podem candidatar nem podem votar - deveriam ser mantidas longe desse negócio, naturalmente, mesmo quando a Prefeitura insinua que acaba de municipalizar o Papai Noel. O maior problema, contudo, não está no comercial isolado: está no aprofundamento de uma tendência geral de que esse comercial é exemplar: cada vez mais, as propagandas de governo - seja ele municipal, estadual ou federal - não hesitam em apelar para capturar o sentimentalismo alheio.

O filme da Prefeitura não é exceção, portanto. Como os demais, ele não quer ser exato, preciso, ainda que lance mão de um número ou outro. Como os demais, não busca abrir as contas da administração, não permite uma comparação técnica entre o que foi prometido e o que foi realizado, nada disso. A linha da comunicação é muito mais adjetiva que substantiva, mais sentimental que objetiva.

As peças de comunicação do Poder Executivo, em todos os níveis, vêm se esmerando no que podemos chamar de demagogia cívico-publicitária a serviço do governante. A propósito, no mesmo mês em que foi ao ar a propaganda da garotinha, o governo federal estava em cartaz com uma campanha de vários filmes de 30 segundos. Em cada um deles, um diferente grupo de cidadãos sobe uma escadaria e chega lá em cima de peito estufado e sorriso firme, numa clara metáfora - um tanto infantil, é verdade - da escalada de quem sobe na vida. Se a campanha da Prefeitura politiza a infância, a outra infantiliza a política. Ambas rebaixam o atendimento direito à informação a um expediente de propaganda.

Os governantes não se abalam, convictos de que a publicidade paga é seu melhor canal com o público. Se questionados, dizem que apenas prestam contas. Sem sua ¿publicidade informativa¿, alegam, a sociedade jamais teria conhecimento do que realizaram, pois a imprensa distorce os fatos e só destaca o que é negativo. Assim, perpetua-se uma das mais tristes tradições nacionais: o uso de (muita) verba pública para veicular, em espaços (muito bem) pagos, mensagens partidárias (porque partidariamente governistas), não para informar, mas para promover a imagem do governo. A lógica das campanhas eleitorais se apossou da comunicação de governo - e esta se apresenta como campanha eleitoral ininterrupta. E infantil.

*Eugênio Bucci, doutor em Ciências da Comunicação pela USP e professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade, presidiu a Radiobrás de 2003 a 2007

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