Título: Justiça é coisa séria
Autor: Nalini, José Renato
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/01/2008, Esáço Aberto, p. A2

Passados 20 anos da Constituição cidadã e após três anos da Emenda Constitucional 45, de 2004, que reformou o Judiciário, se existem avanços, muita coisa resta por ser feita.

A tônica da reforma foi a aceleração dos julgamentos. O tempo da Justiça não se compadece com o ritmo da sociedade contemporânea. Ocorre que a preocupação com a presteza na decisão judicial ainda se encontra atada a uma velha concepção. Acredita-se que a única fórmula de proferir mais decisões é mediante a criação de novos cargos de juízes.

Não há dúvida que sentenciar é a missão do juiz. Ele existe para isso. Mas o constituinte sinalizou alternativas que ainda não foram inteiramente implementadas. De algumas delas nem sequer se cogitou. É a cultura infensa à ousadia, fóbica à inovação, aferrada a velhos e superados parâmetros.

Mera leitura dos preceitos constitucionais incluídos pelo reformador do Judiciário é suficiente para a constatação de que outras providências podem ser adotadas sem ônus e sem o agigantamento da máquina. Prevê-se, por exemplo, que os servidores receberão delegação para a prática de atos de administração e atos de mero expediente, sem caráter decisório. O que se fez para dotar o funcionalismo de maior iniciativa e, conseqüentemente, de maior responsabilidade?

Desde 1988 consta da Carta da República a possibilidade de criação de Juizados Especiais providos por juízes togados ou togados e leigos. As causas confiadas a tais unidades judiciais reclamam procedimento oral e sumaríssimo, permitidos a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

Onde foi que se aproveitou o juiz leigo para auxiliar a desafogar a Justiça? As turmas de primeiro grau, encarregadas do julgamento em segundo, são as do local onde se julgou. Na mão contrária da direção, a criação de grandes colegiados, centralizados na capital. Espécie de ressurreição dos extintos Tribunais de Alçada.

Também o juiz de paz, desde 1988, poderia exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação. Por que não se aproveita esse profissional para auxiliar na distribuição do justo concreto?

Outro importante dispositivo posto à disposição das Justiças estaduais pelo constituinte derivado é o de funcionamento descentralizado do Tribunal de Justiça. As Câmaras Regionais são previstas na Constituição, desde dezembro de 2004, como forma de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à Justiça em todas as fases do processo.

Não é concebível que se invoque inviabilidade de implementação desse preceito, a pretexto da dificuldade na instalação de tais Câmaras Regionais. Pense-se em São Paulo, por exemplo. Um Tribunal de Justiça, com 360 desembargadores, não teria dificuldade alguma em fazer funcionar Câmaras Regionais nos diversos pólos de desenvolvimento situados no interior ou no litoral. Salutar o julgamento de recursos nas regiões de São José do Rio Preto, São José dos Campos, Santos e Ribeirão Preto, dentre outras. A descentralização é racional, inibe a remessa física dos autos para apreciação na capital e reduz tempo, dispêndio e a grande concentração até mesmo de trânsito no centro da conturbada metrópole.

O constituinte ainda previu a criação de Varas especializadas para dirimir conflitos fundiários, competentes para questões agrárias e com a presença do juiz no local do litígio. Todos os Estados brasileiros têm conflitos fundiários. Não é conveniente que se cumpra o preceito, para atenuar a tensão no campo?

Todas essas iniciativas não dependem senão da vontade política dos detentores dos cargos de direção dos tribunais. Em lugar de procurar conferir uma fisionomia renovada à missão de outorgar a jurisdição, parece preponderar a velha tendência da criação de unidades convencionais. As gestões bienais não permitem o desenvolvimento de um projeto ou o estabelecimento de metas. O resultado é que se investe na multiplicação de novas Varas e comarcas, com instalação apressada de unidades que depois necessitarão de estruturas materiais e funcionais.

A criação indiscriminada de novas unidades pode atender a vários objetivos. Presume-se a boa intenção de quem alimenta a utopia de contar com um juiz em cada esquina. Mas se esquece que o custeio é muito mais dispendioso do que a mera criação e instalação, com aposição de placas, e a realização de festividades tão ao gosto do provincianismo colonial. Cada unidade nova representa um ônus e a depauperação da máquina, que está subordinada aos limites da responsabilidade fiscal.

Seria utópico aguardar uma correção de rumos. Coragem para extinguir os foros distritais de capacidade ociosa, com recondução do magistrado e funcionários à sede da comarca e atendimento periódico itinerante, quando for o caso. Fortalecimento das técnicas de gestão para tornar a prestação jurisdicional mais rápida e racional. Motivação do funcionalismo para a multiplicação de sua capacidade de trabalho, não para a profusão de cargos já contaminados pelo desestímulo.

Os tribunais são órgãos políticos e, como tais, devem exercer sua missão na democracia brasileira. Dialogar com o Executivo, grande cliente da Justiça, para reduzir o número de lides temerárias e de teimosia na reiteração das teses vencidas. Adotar tecnologia esperta e seguir o exemplo das empresas que, para sobreviverem à competição na lex mercatoria, tiveram de se reciclar e ressurgiram renovadas e eficientes.

Justiça é coisa séria demais para permanecer sempre a mesma, se a sociedade é dinâmica e a cada dia mostra uma exigência diversa.

José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, é presidente da Academia Paulista de Letras

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