Título: A maior batalha do País
Autor: Torquato, Gaudêncio
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/01/2008, Espaço Aberto, p. A2

A eleição do prefeito da maior capital do País é considerada estratégica para a montagem do palco da guerra que se trava em torno do pleito presidencial, que ocorre dois anos depois. O voto paulistano pesa muito. Trata-se de um colégio de mais de 8 milhões de eleitores, o quinto do País, ultrapassando a soma do eleitorado de alguns Estados, e sua composição reflete comportamentos, atitudes e gostos inerentes à cultura política. A disputa deste ano, porém, configura-se como a mais importante dos últimos tempos, pois servirá de termômetro para aferir a temperatura política, significando não apenas a medição de forças dos atores municipais, mas a avaliação dos potenciais dos exércitos situacionistas e dos batalhões oposicionistas na arena federal. Cosmopolita, laboratório da engenharia comportamental do Brasil, São Paulo, mais que outras capitais, exibe a peculiaridade de refletir vivências e vontades de todas as classes sociais. Por aqui temos o voto de cabresto, forte nos grotões do País, e também o voto racional, consciente, que, por sua vez, se junta às escolhas ditadas pelo império religioso, pela identificação partidária ou pela proximidade entre candidatos e eleitores.

Em decorrência do pragmatismo que condiciona o voto ao atendimento de demandas imediatas das populações - melhoria da vida urbana e dos serviços municipais -, as campanhas tendem a privilegiar o fator local. Mas o palco paulistano, este ano, fará eco ao bumbo nacional. Expliquemos. A metrópole agrega os maiores redutos de pressão, os mais fortes grupamentos de classe média, gigantescas organizações sindicais e bolsões periféricos, todos eles submetidos, de forma direta ou indireta, às macropolíticas econômicas e sociais, constituindo-se, por conseguinte, na principal tuba de ressonância nacional. Deve-se agregar à argumentação o fato de que, nos últimos anos, a politização da sociedade se tornou aguda, em razão do dissenso provocado pelo PT - com sua visão stalinista do uso da estrutura do Estado - e do estilo retumbante e provocativo do presidente Lula, que não perdeu a mania de recorrer ao velho bordão da luta de classes. Resulta disso visível distanciamento entre grupos contrários e favoráveis ao petismo/lulismo. O partido, por sua vez, insiste em se confinar nas margens, pouco se esforçando para chegar aos redutos médios, que começam a despertar a atenção de Luiz Inácio.

O caldo dos sentimentos sociais é apimentado pelos escândalos que corroeram o petismo e pela maneira lulista de administrar, centrada no mais refinado fisiologismo e na lobotomização do Ministério. O governo, por sua vez, parece não se abalar com nada. Conta com a estabilidade da economia, a queda do risco Brasil, a inserção de alguns milhões de pessoas no mercado de trabalho, a carga tributária no pico da montanha e um plano gigantesco de obras. Esse é o tapume de que se vale para esconder as tragédias que nos cercam: o sucateamento da educação, a segurança pública destroçada, as estradas esburacadas, a saúde na UTI (até febre amarela reaparece) e a ameaça de apagão de energia. Enquanto essa percepção mobiliza segmentos esclarecidos, os núcleos mais carentes, sob o cobertor assistencialista, são impermeabilizados com o cobertor do Bolsa-Família.

Esta é a moldura sob a qual se desenvolverá a campanha municipal deste ano em grandes cidades, a partir de São Paulo. Por conveniência, a temática nacional não deverá alimentar o discurso de candidatos, mas oxigenará as veias de alguns segmentos. Para se entender esse processo convém dizer que as motivações subjacentes à decisão do eleitor obedecem a ordens variadas. Numa metrópole como São Paulo, por exemplo, o voto se dá em função da identificação do eleitor com o candidato (ele se acha próximo e parecido), pela capacidade do candidato de enfrentar inimigos e, ainda, pela análise de seu potencial para cumprir promessas. Identidade, oposição e eficácia administrativa são os três pólos que sustentam o voto. Pesquisas mostram que no Brasil e, particularmente, em São Paulo o voto emotivo - o de identificação entre candidato e eleitor - diminui, dando lugar ao voto pragmático, pelo qual o eleitor faz o julgamento com base na capacidade de realização. Quando se trata de um perfil carismático, como o de Lula, por exemplo, o voto por identificação se mantém forte. Já a escolha de um candidato por oposição a outro, o voto útil, é muito forte em São Paulo, em função da polarização de visões e grupos.

Em sendo assim, puxemos para a arena três eventuais candidatos: Geraldo Alckmin, Marta Suplicy e o atual prefeito, Gilberto Kassab. Alckmin é um dos dois nomes - o outro é Beto Richa, de Curitiba - capazes de dar ao PSDB uma grande prefeitura. Partido sem base fenece. Por isso o tucanato não deverá perder a chance. O desafio do ex-governador paulista será o de ganhar o voto emotivo das margens. Já Marta, pelo PT, deverá seguir o percurso contrário, consolidar as margens e correr em direção ao voto crítico do centro, enquanto a estratégia de Kassab deverá envolver os bolsões martistas e também a classe média. Tem a seu favor a ação da limpeza urbana e o programa de obras nos bairros, com as quais pretende fazer contraponto aos ¿Céus¿ (Centros Educacionais) da petista. Mas o cenário mais provável é a polarização entre os figurantes mais densos, o ex-governador e a ministra. Lula, de um lado, será um grande eleitor, mais do que Serra. O presidente deverá municiar seus exércitos. Mas há um pano de fundo a considerar: na eleição de 2006, ele perdeu, no segundo turno, para Alckmin, de 54,42% contra 45,58%. E em 2004 Marta perdeu, no segundo turno, para Serra, por 45,14% a 54,86%. Nove pontos de diferença, eis a conta da polarização. Se Kassab não entrar no pleito, Alckmin arrebanhará a maior parte de seus votos. Marta ainda é a candidata com alguma chance de dar ao PT a maior Prefeitura do País.

Mesmo de longe, vê-se a fumaça da mais sangrenta batalha do País.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político

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