Título: Bush no Egito
Autor: Cardoso, Eliana
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/01/2008, Espaço Aberto, p. A2

Bush visita o Oriente Médio. Lá estive também, na primeira semana de 2008. E 30 anos atrás Jorge Luis Borges - que correu o mundo na última década de sua vida - escreveu, ao voltar do Egito, que, ao se aproximar de uma pirâmide, se abaixou e apanhou um punhado de areia. Um pouco adiante, deixou-a escorrer de seus dedos e disse baixinho: ¿Mudei o Saara.¿

As palavras de Borges captam a dimensão da ação humana ante a imensidão do universo. Em relação ao infinito, não existe diferença entre uma pirâmide e um montinho de areia. Um dia, até as pirâmides deixarão de existir. Enquanto isso, cada um de nós carrega seu grão de areia e transforma o mundo.

Mas as pirâmides o reinventam de forma especial. Sua simplicidade poderosa oferece um contraste fascinante com o ambiente igualmente despojado em seu entorno. Elas, de fato, transformam o deserto, pois cada uma aponta para o céu um vértice pontiagudo, que desenha linhas retas entre a luz e a sombra. O efeito não poderia ser maior, porque a luz nunca encontra obstáculos ou ângulos duros na natureza do deserto. Sem os túmulos dos faraós a luz seria redonda como as sombras das dunas na areia.

As três pirâmides - a 11 km do centro do Cairo - se dispõem ao longo de uma linha paralela às diagonais das três construções. Uma delas é menor que as outras. De propósito. Para criar uma orientação para o conjunto. Vistas do avião, as pirâmides da necrópole de Gizé tornam evidente seu alinhamento, que marca a presença do Nilo a alguma distância.

Volto ao Egito, onde morei, depois de vários anos de ausência. Não há surpresas. A cidade do Cairo continua imunda, coberta pela areia da cor da pele de leões, barulhenta e abarrotada de gente. Entre as cidades mais populosas do mundo, tem uma geografia que a impede de se espraiar para aliviar o sufoco da gente que se amontoa por todo lado. O deserto que a cerca torna inevitável o desconforto: mais de 12 milhões de pessoas vivem numa área de 52 quilômetros quadrados, em contraste com Chicago, onde menos de 4 milhões de pessoas vivem em 600.

A economia também continua a mesma. Em cada esquina alguém oferece ao passante uma bugiganga ou lhe pede um dinheirinho. Assim se redistribui renda quando o governo coleta poucos impostos e tem um déficit superior a 7% do PIB.

As transações se fazem com dinheiro vivo. Fora do Cairo até mesmo os hotéis se recusam a aceitar cartões de crédito. Nenhuma mercadoria tem preço fixo. O preço depende da cara do freguês e de sua estratégia de barganha.

Meus netos, acostumados ao conforto do preço fixo - que contém informação sobre a qualidade da mercadoria, o status que ela confere e o serviço da loja e que, portanto, evita buscas prolongadas e negociações aborrecidas -, reclamam do custoso processo de transação à moda árabe. E aprendem a valorizar o mercado ocidental, onde compradores e vendedores, convencidos de que o preço fixo reflete uma transação legítima, não tentam ganhar vantagem uns sobre os outros.

Encontramos refúgio na mesquita vazia do sultão Hassan. Gozamos um momento de paz até sairmos mais uma vez ao encontro do bafo do asfalto. É um zunzunzum. No corre-corre do tráfico, entre o rebuliço de calhambeques, microônibus e caminhões, um homem atravessa quatro carneiros. Um burrico puxa uma carroça carregada de melancias. Lenços, que deixam a cara à mostra e lembram a abertura de uma tenda de acampar, compõem a vestimenta das mulheres.

Em matéria de subordinação feminina, o Egito é diferente da Arábia Saudita, onde a mulher não pode aparecer em público com a cara descoberta nem se sentar sozinha num restaurante. Mas também no Egito a cultura islâmica vem recobrando proeminência desde 1967, depois da derrota na Guerra dos Seis Dias. As explicações populares da derrota - militares corruptos e ineficientes e o abandono da religião - resultaram na perda de confiança em Nasser e suas doutrinas seculares. Os grupos islâmicos ganharam poder.

Os direitos democráticos foram suspensos nos anos seguintes à revolução de 1952 e a lei de emergência, reforçada depois do assassinato de Sadat. Hoje o Estado ainda conserva a prerrogativa de definir o crime e puni-lo à vontade. Democracia nas Arábias não é moeda corrente. Ao longo da História, diante da escolha entre a anarquia ou um Estado despótico, a população escolhe o último. Este, uma vez instalado, torna muito alto o custo para o indivíduo que se opõe ao status quo. A conseqüência é apatia, resignação e obediência às regras impostas pelo governo.

A ajuda militar dos EUA sustenta o Exército egípcio. O Exército sustenta o governo de Hosni Mubarak, que em 2007, pela primeira vez em 26 anos, deixou de pagar sua visita regular aos EUA. A razão é que o Congresso americano cortou US$ 100 milhões do US$ 1,3 bilhão de ajuda anual militar ao aliado árabe.

Em visita ao Cairo neste mês de janeiro, Bush encontrará dificuldades para fazer valer as queixas de Israel, que acusa o Egito de permitir ao Hamas contrabandear armas e homens para dentro da Faixa de Gaza. Na capital da dança do ventre, o presidente americano deixará de ser agraciado com o espetáculo da dançarina de barriga de fora e véus sobre as pernas.

A dança exibe um rebolado diferente do gingado da carioca e exige repentinos e violentos movimentos diagonais dos quadris, que se interrompem para dar lugar a tremeliques da barriga. Depois a bailarina dobra o corpo para a frente e mostra os peitos roliços, que fazem as delícias da platéia.

A moça bonita dança, enquanto janto com meus netos no Maxime. No dia seguinte vamos embora do Cairo para visitar Carnac e Luxor, passear de feluca em Assuã e, depois, deixar o queixo cair diante do templo de Abul Simbel às margens do Lago Nasser.

Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV Site: www.elianacardoso.com

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