Título: O Cade e a Justiça
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/01/2008, Notas e Informações, p. A3
Assim que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) cassou a última liminar que permitia à Vale do Rio Doce sustar o cumprimento de decisões do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), as duas partes agiram rapidamente: o órgão administrativo aplicou uma multa milionária e deu cinco dias para o pagamento; e a empresa recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF).
O litígio começou em abril de 2005 quando, acionada pela CSN, a procuradoria do Cade apresentou um parecer alertando para o risco de formação de monopólio no mercado de minérios por parte da Vale. Quatro meses depois, ao julgar a aquisição de oito mineradoras pela empresa, o órgão antitruste impôs à Vale que só aprovaria o negócio caso ela vendesse a mineradora Ferteco, de sua propriedade, ou renunciasse ao direito de preferência na compra do minério de ferro excedente produzido na mina Casa de Pedra, que pertence à CSN.
A Vale recorreu à Justiça Federal e, após travar uma guerra de liminares que durou dois anos, acabou derrotada no STJ. Ao justificar a decisão, o presidente da corte, ministro Raphael de Barros Monteiro, afirmou que as sucessivas liminares pedidas pela Vale para evitar o cumprimento das decisões do Cade constituem ¿ofensa à ordem pública administrativa¿. Em seu recurso ao STF, a empresa alegou que Barros Monteiro teria ido além de sua competência.
Este é o ponto central da questão. Até que ponto uma empresa pode recorrer indefinidamente nos tribunais contra as decisões de mérito de um órgão administrativo? E qual a linha que separa a aguerrida defesa de interesses, com base nos recursos propiciados pela legislação processual, da litigância de má-fé?
Esse problema não é novo. Desde a polêmica em torno da formação da AmBev, por meio da incorporação da Antarctica pela Brahma, e da compra da Garoto pela Nestlé, as grandes corporações vêm recorrendo à Justiça todas as vezes em que são derrotadas no Cade, que é uma autarquia vinculada ao Ministério da Justiça. A estratégia das empresas enfraqueceu institucionalmente o órgão antitruste, que é a espinha dorsal do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Com a profusão de liminares concedidas pela Justiça Federal, nos últimos anos, ficou mais difícil para o Cade implementar decisões com o objetivo de impedir a concentração do poder econômico em setores estratégicos da economia.
Desde então, os diferentes conselheiros que atuaram no órgão, em suas declarações de voto, artigos jornalísticos e depoimentos no Congresso, passaram a protestar contra a ¿judicialização das decisões administrativas¿, em matéria de legislação antitruste. Eles alegam que, ao conceder automaticamente as liminares pedidas, os juízes federais permitem às empresas criar situações de fato que inviabilizam o cumprimento das decisões do Cade.
A estratégia do órgão antitruste parece ter surtido efeito no STJ. A decisão que a corte tomou na semana passada impede expressamente as instâncias inferiores da Justiça Federal de conceder novas liminares à Vale. Com isso, ela reforça a autoridade institucional do Cade e dos outros dois órgãos administrativos que compõem o SBDC, a Secretaria de Direito Econômico e a Secretaria de Acompanhamento Econômico. Mesmo assim, esgotando todas as possibilidades de defesa, a Vale voltou a recorrer. Alegando que a ida à Justiça é um direito garantido pela Constituição, a empresa agora quer ser indenizada pela CSN, caso perca seu direito de preferência na compra do minério de ferro produzido na mina Casa de Pedra.
Cabe agora à mais alta corte do Judiciário julgar uma questão que, no mérito, de acordo com o SBDC, é de competência do Cade. Independentemente da decisão que o STF vier a tomar, este caso é mais uma amostra do anacronismo da legislação em vigor, especialmente a processual. Ao propiciar discussões jurídicas intermináveis, ela prejudica o funcionamento dos órgãos administrativos de defesa da concorrência, congestiona as instâncias superiores da Justiça e dissemina insegurança jurídica entre os agentes econômicos.
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