Título: O diploma honoris causa das Farc
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/01/2008, Notas e Informações, p. A3
Faltou pouco, muito pouco, para o presidente Lula dar uma demonstração de coerência que só fortaleceria a percepção internacional de sua singularidade como dirigente político latino-americano - uma figura que o Norte não consegue encaixar em nenhum dos estereótipos através dos quais de há muito se acostumou a enxergar os ocupantes dos governos da região, com as suas mentalidades e práticas inconfundíveis. Nos dias que correm, se há um assunto que atrai as atenções mundiais para a América Latina é a sina dos reféns das Farc. A libertação de duas de suas prisioneiras, o reencontro de uma delas com o filho concebido no cativeiro, e de quem fora apartada oito meses depois do seu nascimento, e os testemunhos do cotidiano de selvageria nos domínios da narcoguerrilha puseram em evidência no noticiário o papel central da desumana prática dos seqüestros para a sobrevivência da debilitada organização criminosa.
Diante dos horrores descritos de viva voz pelas colombianas libertadas, até o coronel Hugo Chávez foi obrigado a condenar publicamente as ações dos celerados, aos quais se referiu como 'revolucionários bolivarianos' quando propôs que deixassem de ser chamados de terroristas e fossem promovidos a insurgentes - em nome da 'humanização da guerra'. A indecente sugestão foi de pronto repelida por vários governos latino-americanos, a começar do argentino, apesar de sua dependência dos petrodólares de Caracas. O chanceler brasileiro Celso Amorim, por exemplo, negou que o diálogo para o resgate dos inocentes tenha a ganhar com a sanitização das Farc. Dar-lhes status político, argumentou, 'pode até dificultar esse diálogo, do ponto de vista do governo da Colômbia'. Na terça-feira, pouco antes de voltar de Cuba, foi a vez de Lula ser instado a se manifestar sobre o pesadelo colombiano. Não deixou por menos.
'Fazer com que inocentes paguem o preço da disputa política não é admissível. É abominável essa história de seqüestros', afirmou. 'Acho que o seqüestro não pode ser aceito por nenhum ser humano de juízo perfeito.' Ele fez ainda questão de se dissociar de qualquer coisa que lembre, mesmo remotamente, o insano projeto farquista. 'Fiz uma opção pela democracia. Construí um partido e, em 20 anos, cheguei à Presidência. As Farc fizeram uma opção que já dura 40 anos', comparou. Mas, nesse ponto, estancou. Perguntado como elas devem ser tratadas, lançou palavras ao vento. 'Como elas são', devolveu. 'O Brasil não é território de classificação (sic) de tendência política ou grupo de luta armada.' E se refugiou no fato de a ONU não incluir as Farc entre os movimentos caracterizados como terroristas.
Mas, como elas são? Mesmo que elas fossem forças insurgentes, o presidente brasileiro sabe muito bem que grupos insurgentes em países soberanos e democráticos são - para repetir o seu adjetivo - abomináveis. E por levarem o terror às populações a eles expostas, o que é próprio dos seus métodos, são definidos como terroristas. Ainda que em nome de um objetivo humanitário maior - a libertação do maior número possível dos seus seqüestrados - seja legítimo negociar com os facínoras. A polícia não faz o mesmo, quando necessário, com os chamados delinqüentes comuns? E serão diferentes os padecimentos das vítimas, em um caso ou outro? Uma das colombianas libertadas, Consuelo González, trouxe consigo o escrito de um coronel da Polícia Nacional, Luis Mendieta, sobre os seus nove anos nas mãos das Farc. Ele narra os sofrimentos impostos aos prisioneiros, por puro sadismo, em viagens a pé, pela selva, as dores, o desânimo, os 'neurônios perdidos', o desaparecimento dos parcos pertences pessoais dos já sem forças para carregá-los.
De quando em quando, um guerrilheiro que ainda não se despojou por completo dos vestígios de decência elementar presenteia um refém com papel higiênico ou dentifrício. Mas o próprio registro do acontecimento testemunha a sua excepcionalidade. A rotina, que atormenta Mendieta mais do que a dor física e as correntes no pescoço, é 'a agonia mental, a maldade do mau e a indiferença do bom, como se não valêssemos, como se não existíssemos'.
O que mais seria preciso para dar às Farc o 'diploma' que conquistaram honoris causa, que não é o de terroristas - o terrorista quase sempre age em nome de uma causa nobre -, mas, sim, o de quadrilha de celerados?