Título: O trânsito e as motos
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/01/2008, Notas e Informações, p. A3

Nas grandes cidades que ainda não conseguiram resolver seu problema de congestionamento de trânsito com a única solução possível, que é a de um eficiente transporte coletivo - e este é o caso de São Paulo, onde só se construíram 80 quilômetros de linhas de metrô, quando, há 30 anos, se previa que seriam necessários, para os dias de hoje, 180 quilômetros -, a rapidez do transporte de pessoas ou cargas por meio de motocicletas, se em alguma medida vence a morosidade do tráfego, o faz com o risco de muitos e em proveito de poucos. O que se assiste, na verdade, é a um volume descomunal de acidentes, provocados por jovens motoboys que, para obter um rendimento razoável - numa atividade em que a rapidez das entregas é a condição da sobrevivência dos negócios -, arriscam suas vidas e as de outros, nas ruas e avenidas.

Desde o início do ano entraram em vigor novas regras, estabelecidas por resoluções do Conselho Nacional do Trânsito (Contran), especificando dispositivos que dão mais segurança aos motociclistas - como faixas refletivas nas laterais e traseira dos capacetes, normas para o uso de baús no transporte de cargas em motos e selo de certificação, nos equipamentos, do Inmetro. Também foi reajustado o valor do seguro obrigatório cobrado dos motociclistas.

Como acontece com grupos que costumam reagir como bandos à menor contrariedade, cerca de 2.500 motoboys, em protesto contra as novas regras, pararam o trânsito de São Paulo na sexta-feira passada - bloqueando ruas do centro e as Marginais. E ameaçam com novos bloqueios outras medidas que, de alguma forma, possam restringir seus movimentos na cidade.

Agora, a Prefeitura anuncia que, a partir do dia 11, motociclistas estarão proibidos de circular pelas vias expressas das Marginais. É uma restrição em caráter experimental, parte de um pacote de medidas de segurança - destinadas a reduzir a média brutal de mais de uma morte de motociclistas, por dia, na cidade de São Paulo - que inclui o teste, por cinco dias, de uma faixa exclusiva para motos na Avenida 23 de Maio. A restrição das motos nas vias de maior velocidade nas Marginais (com exceção de trecho da Marginal do Pinheiros, onde só há via expressa) se justifica pelo fato de elas, com tráfego pesado de ônibus e caminhões a uma velocidade máxima de 90 quilômetros, liderarem a quantidade de acidentes com mortes de motociclistas. Em 2006 foram 35, de um total de 740 acidentes com vítimas envolvendo motos na cidade. Nos últimos dois anos, a média mensal de acidentes nas Marginais subiu de 62 para 72 e, historicamente, as pistas expressas registram o dobro de acidentes em relação às pistas locais.

Quanto às pistas exclusivas para motos, como a que se testa na Avenida Sumaré e se pretende testar na 23 de Maio, são elas um notório contra-senso por reduzirem o leito carroçável da via pública em prejuízo dos transportes de maior interesse coletivo. E o contra-senso fica ainda mais patente com o fato de o motorista ser multado se entrar na faixa exclusiva do motociclista, mas o motociclista não ser multado se circular fora dela. O certo seria a Prefeitura proibir também a circulação de motos na 23 de Maio e em outras avenidas de trânsito pesado - deixando que os motociclistas fizessem suas 'costuras' em vias alternativas, com menores riscos para todos.

Essas 'costuras', que estão na raiz do tremendo problema que tem representado as motos na cidade de São Paulo, tornaram-se possíveis por causa do descuido do ex-presidente Fernando Henrique, que vetou o artigo 56 do projeto original do Código de Trânsito, que dispunha, textualmente: 'É proibida ao condutor de motocicletas, motonetas ou ciclomotores a passagem entre veículos de filas adjacentes ou entre a calçada e veículos de fila adjacente a ela.' Era um dispositivo que repetia restrição comum ao trânsito de motocicletas nos países civilizados. Aderia à tendência universal de fazer prevalecer, no trânsito, a segurança de todos sobre a comodidade de alguns, e o interesse coletivo sobre o individual. Ninguém se habilita a fazer reviver, no Congresso, esse civilizado artigo?