Título: Quem te viu e quem te vê
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/02/2008, Notas e Informações, p. A3

A expressão que dá o título deste comentário quase sempre exprime, como se sabe, a surpresa e a decepção diante de alguém que por qualquer motivo mudou para pior, comparado com o que era ou parecia ser, a ponto de se tornar irreconhecível. Mas o que queremos transmitir, no caso específico de que se tratará a seguir, é rigorosamente o contrário - surpresa, sim, mas auspiciosa, diante de um ato que obriga a rever o que se pensava de depreciativo a respeito de quem o praticou. Em outras palavras, o certo seria uma variante do ditado ¿de onde menos se espera¿¿. De fato, não havia a menor razão para esperar que fizesse o que fez na solenidade de abertura do ano legislativo, na quarta-feira, o político escolhido para completar o mandato de presidente do Senado, interrompido pela renúncia do então titular, o tristemente notório Renan (¿Rei do Gado¿) Calheiros.

O potiguar Garibaldi Alves - dele é que estamos falando - pronunciou na ocasião um discurso que, pela franqueza, lucidez e absoluta pertinência, se distingue de todos quantos possam vir à memória em formalidades do gênero. Durante quase uma hora, o orador do evento, que reuniu, como de praxe, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, além da ministra da Casa Civil, representando o presidente da República, deixou literalmente boquiabertos os seus pares e convidados de honra. Em lugar das protocolares frases feitas que o público, de antemão resignado, imaginava que iria ouvir, Garibaldi fez uma crítica implacável - e verdadeira - das distorções da ordem política brasileira, responsáveis pela acentuada assimetria entre os Poderes da República. Teoricamente iguais e harmônicos, formam na prática um sistema desfigurado por um Executivo agigantado, um Legislativo apequenado e um Judiciário espaçoso.

¿A grande centralização do poder federal, com uma União dominadora, poderosa em tudo e onipresente em toda parte, não permite que o Congresso Nacional exerça seu papel¿, disse Garibaldi, que fez questão de acrescentar: ¿Precisamos impedir que outro Poder substitua o Congresso, embora reconheçamos que é uma falha nossa.¿ ¿Fantasiado de poder decisório¿, acusou, ¿incapaz de dar ao País, a tempo e a modo, até o Orçamento da União¿ - que ele diz que é mera ficção -, o Congresso Nacional foi transformado em ¿quarto de despejo de um presidencialismo de matiz absolutista¿. Ao mesmo tempo e por omissão dos próprios parlamentares, o Judiciário extrapola de sua missão constitucional e passa ¿a operar uma agenda legislativa¿. Sabe-se ainda que, do lado do Executivo, o mais absolutista dos recursos de poder que lhe permitem impor-se a um Congresso cronicamente complacente é o instituto das medidas provisórias - ¿cuja precariedade é de sua própria essência¿, assinalou o presidente do Senado. Ele não se limitou, porém, a chover no molhado.

Talvez sob o signo da ¿utopia necessária¿, como disse em outra passagem, Garibaldi propôs conferir às Mesas da Câmara ou do Senado, em revezamento, a atribuição de julgar, caso a caso, se as medidas provisórias emanadas do Planalto atendem aos requisitos constitucionais da urgência e da relevância - grande número delas não é uma coisa nem outra, assim como é numeroso o contingente de deputados e senadores que as verberam, mas nada fazem para ao menos filtrá-las: ou porque apóiam o governo ou porque, na oposição, esperam retomá-lo e exercê-lo com a mesma desenvoltura em matéria de legislar. Há lógica, portanto, nessa autodesvalorização a que Garibaldi chamou ¿império da inércia¿. Ele apontou ainda outra chaga do Congresso - e nisso não poderia ter sido mais oportuno, agora que tomou posse, no lugar do pai promovido a ministro, o senador sem votos e sob suspeitas Edison Lobão Filho. ¿Há grande perplexidade¿, reconheceu, ¿quanto à investidura de alguns.¿

Foi chocante o contraste entre o discurso do presidente do Senado e a mensagem do presidente da República, lida pela ministra da Casa Civil na abertura da solenidade. Versão brasileira da fala sobre o Estado da União, do presidente norte-americano, o discurso, despachado burocraticamente, cala sobre o estado do Brasil em 2008, preferindo decantar os feitos lulistas, invariavelmente sem paralelo, em 2007. Ao Lula governante, não se aplica o ¿quem te viu e quem te vê¿ - é sempre a mesma cantilena autolouvatória.