Título: Crise de energia, crise de decisão
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/01/2008, Economia, p. B2

A crise energética está aí, embutida nos preços da eletricidade, e a questão não é mais saber quando começará, mas quanto poderá agravar-se. Os consumidores têm pago cada vez mais nos leilões do mercado livre e o aumento de custo já entra nos cálculos das empresas. É mais um tijolão na mochila de pedras carregada pelos industriais brasileiros, forçados a enfrentar os competidores em condições cada vez mais desfavoráveis. Ninguém, no governo, parece dar atenção a esse detalhe, mas isso não surpreende. Esse mesmo governo já anunciou a suspensão, ou pelo menos o adiamento, da segunda etapa de sua política industrial, como se tivesse havido uma primeira. Não houve, nem havia uma segunda programada: pelas promessas, havia apenas um arremedo, formado por algumas desonerações pontuais. Agora, nem isso, segundo dizem, por causa do fim da CPMF. Essa desculpa ainda vai render muito.

Não haverá apagão, tem repetido o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa ladainha cada vez menos convincente. O gás será usado prioritariamente para a produção de energia elétrica, disse ele na segunda-feira em seu programa de rádio. Mas a escolha caracteriza um apagão. Seria algo diferente, se o gás já não fosse usado, há anos, para abastecer automóveis e indústrias. Mas é, e esses consumidores ficarão abandonados, se for preciso desviar o combustível para as térmicas. Esses mesmos consumidores foram encorajados, anteriormente, a usar gás natural. Agora estão arriscados a ter de mudar, de uma hora para outra, porque foram escolhidos para o sacrifício.

Industriais têm defendido a adoção imediata de medidas de racionalização - ou de racionamento, se se quiser usar uma palavra mais direta. A idéia continua oportuna, porque as chuvas dos últimos dias pouco mudaram o panorama. O risco de escassez de água permanece, de acordo com o boletim de ontem do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

Mas o presidente Lula - ele mesmo o disse a seus auxiliares na semana passada - não quer ouvir falar de racionamento. Acima de tudo, ele rejeita a idéia de mobilizar as famílias para economizar água e energia. No entanto, uma campanha a favor do uso mais eficiente da eletricidade e da água poderia ter múltiplos efeitos benéficos. Serviria, no caso de uma estiagem prolongada, para tornar menos penosa a adaptação a uma crise. A poupança de água, no verão, tornaria mais fácil a travessia dos meses normalmente mais secos. O efeito da escassez sobre a atividade industrial - e sobre o nível de ocupação, portanto - seria menos danoso. O orçamento familiar seria beneficiado tanto pela economia na conta de luz quanto pela preservação do emprego.

Mas o presidente Lula não parece disposto a convocar a população para um sacrifício, mesmo limitado, em ano de eleições municipais. Prefere fazer uma aposta de alto risco e continuar confiando na sorte. Esta sorte nunca o traiu, desde o início de seu primeiro mandato: quantas vezes se viu, na economia global, um período tão longo de prosperidade e de abundância de capitais?

Desta vez, no entanto, a aposta é dupla. Internamente, o presidente Lula precisa de um volume de chuvas no mínimo suficiente para se evitar um racionamento explícito. Isso não resolverá o problema de longo prazo. Este só será resolvido por um rápido aumento dos investimentos em geração de energia. Externamente, a boa sorte se confirmará se as autoridades americanas - do banco central e do Tesouro - forem capazes de abreviar a crise econômica nos Estados Unidos.

O Brasil está razoavelmente blindado, no setor externo, e poderá enfrentar sem grandes danos um período ruim na economia internacional - se as dificuldades passarem logo. Não ficará imune, mas será capaz de resistir, especialmente se a crise energética não se agravar.

Por enquanto, os brasileiros podem apenas torcer, porque o governo ainda não se mexeu para cuidar seriamente de qualquer das duas ameaças. O setor energético só tem entrado nos cálculos de Lula, desde o ano passado, como objeto de barganha com seus aliados políticos. A área fiscal, agora sem a CPMF, continua sujeita à orientação básica de gastança, com o governo incapaz de racionalizar suas contas. Na hora do aperto, se vier, restará o Banco Central (BC), única área do governo onde se notam sinais de vida e de preocupação conseqüente com o mundo real. Mas o instrumento principal do BC é a política de juros. Pau nele, portanto, enquanto o resto do governo se esbalda na inércia.

*Rolf Kuntz é jornalista