Título: O risco de semear a tempestade
Autor: Barba, Mariana Della
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/02/2008, Internacional, p. A16
A essa altura, a questão de quem venceu a eleição é secundária. Nem o ¿presidente¿ Mwai Kibaki nem Raila Odinga deveriam ter permissão de se aproximar da presidência. O país está implodindo, pessoas morrem ou ficam desamparadas, e esses dois grandes homens têm de ser levados para a mesa de negociação.
A idéia do Quênia para os quenianos e do direito de todos os quenianos de viver onde quiserem está morta. Algumas das vítimas da violência no Vale do Rift perderam tudo pela segunda ou terceira vez. Muitas prometeram nunca mais voltar. A mensagem enviada pela violência é que o único lugar realmente seguro para se criar qualquer raiz é entre os seus. O Vale do Rift para os kalenjin, a Província Central para os kikuyu e assim por diante.
Quando eu era criança, minha família e eu viajávamos pelo menos uma vez por ano para visitar meus avós, tomando o sentido oeste da A104, a estrada de Mombasa até a fronteira com Uganda. Embora durasse oito horas e fosse cheia de solavancos, a jornada por meio da Província do Vale do Rift era agradável. Parávamos periodicamente para ir ao banheiro ou comer em Naivasha, Nakuru, Kericho e, por fim, Kisumu. Meus pais compravam produtos dos fazendeiros locais, que acabavam dentro da cabine da caminhonete. E assim continuávamos, com batatas, cenouras e repolho.
Em 1992, quando o espectro da violência no Vale do Rift surgiu pela primeira vez, às vésperas das eleições, os sinais de problema estavam por toda parte. Havia casas incendiadas ao longo da estrada. Os fazendeiros que vendiam produtos na beira da rodovia tinham desaparecido - pelo menos os kikuyu. Grandes áreas estavam abandonadas.
O Vale do Rift é a maior das oito províncias do Quênia e, à exceção de Nairóbi, a mais populosa e etnicamente diversificada. Pessoas do país todo migraram para suas áreas urbanas e plantações. Assim, além dos nativos kalenjin, existem grandes números de kikuyu, luhya, luo, kisii e outros. Não há nada de errado nisso. Sempre nos disseram que o Quênia era para todos os quenianos. Éramos livres para circular por onde quiséssemos, morar onde quiséssemos.
Durante anos, essa retórica escondeu um ódio permanente em torno das terras e de sua distribuição: quem era o dono, por que alguns tinham tão pouco e outros tinham tanto, como os grandes proprietários haviam obtido o que possuíam. Mas a maior parte desses sentimentos foi contida, até que, em 1992, diante da possibilidade concreta de perder o poder, Arap Moi, cinicamente, deu a esse ódio uma vazão homicida. Os que não eram kalenjin, disseram-nos, eram apenas visitantes no Vale do Rift. Eram bem-vindos contanto que andassem na linha, ou seja, votassem nos candidatos certos. Na ocasião, poucos ¿forasteiros¿ tiveram chance de votar no Rift. A maioria foi expulsa numa onda de ataques, incêndios e assassinatos que nos deixou totalmente chocados. Com o fim das eleições e Moi no cargo, a violência perdeu intensidade. Os ¿visitantes¿ regressaram aos poucos para reconstruir suas vidas e casas, mas muitos não voltaram e, em alguns lugares, o retorno à normalidade levou anos. Essa caixa de Pandora da violência nunca foi fechada com sucesso. Foi mantida em banho-maria, com surtos ocasionais, e agora explodiu novamente.
Engana-me uma vez, diz o ditado, e a vergonha é sua. Engana-me duas vezes e a vergonha é minha. Muitos kikuyus no Vale do Rift devem estar lamentando a insensatez de voltar a viver entre pessoas que comunicaram sua antipatia tão violentamente. E muitos quenianos certamente observam e se perguntam o que tudo isso significa.
Algum ¿forasteiro¿ um dia voltará a apostar sua sobrevivência num país chamado Quênia e comprará terras no Rift - ou em qualquer outro lugar fora de seu distrito de origem? Ou todos nós recuaremos para a segurança de nossos enclaves étnicos homogêneos? Seremos um dia capazes de nos olhar novamente nos olhos, suprimindo a consciência do que fizemos e do que somos capazes de fazer uns aos outros? Se não, que tipo de país nos tornaremos?
A memória nacional é duradoura e as feridas não são facilmente esquecidas ou perdoadas. O Vale do Rift é prova disso.
Mas, agora, estamos disseminando um amargo vento de injustiça e, se não enfrentarmos esse desastre com sensatez e com mais coragem e honestidade que nunca, certamente semearemos a tempestade. A memória nacional, de fato, é duradoura. Jamais podemos esquecer que nossos chamados líderes nos traíram.
*Andia Kisia, escritora e dramaturga, escreveu este artigo para o jornal `The Guardian¿
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