Título: Crise afetará regulação financeira
Autor: Loyola, Gustavo
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2008, Economia, p. B2

A origem da atual crise no segmento ¿subprime¿ do mercado hipotecário norte-americano é principalmente a política monetária praticada entre 2003 e 2006. Nesse período, o Fed manteve as taxas de juros abaixo do recomendável, pelo receio de que a economia dos EUA pudesse entrar numa deflação do tipo ¿japonesa¿.

A relação entre a alta dos preços dos imóveis, estimulada pelos juros baixos, e o crescimento dos empréstimos imobiliários é uma avenida de mão dupla. Por um lado, o aumento do crédito eleva a demanda por habitações e exerce pressão altista sobre seus preços. Por outro, a elevação de preços estimula novos financiamentos, já que faz declinar a inadimplência e eleva o valor futuro esperado da garantia associada ao crédito. Tal ciclo auto-alimentado é interrompido quando uma alta dos juros pelo BC atua para frear ou reverter a elevação dos preços dos imóveis, como ocorreu a partir de 2006.

Porém, a existência da fagulha não assegura o incêndio. O ¿boom¿ dos preços dos imóveis não necessariamente teria levado a uma crise com as proporções da atual. Foi preciso que outros fatores atuassem, como as falhas de mercado e a inadequação da regulação financeira às recentes transformações dos mercados financeiros.

A situação não teria adquirido contornos explosivos tivessem os emprestadores avaliado corretamente os riscos de crédito, principalmente no que concerne aos efeitos adversos de uma eventual reversão na política monetária. Há várias explicações para a contagiosa epidemia de miopia ante os riscos de crédito que grassou entre muitas instituições financeiras internacionais de grande porte. Sem querer esgotar aqui o tema, fiquemos com três problemas que nos parecem fundamentais.

O primeiro deriva da anorexia dos modelos de avaliação de risco. Tais modelos são construídos a partir de regularidades estatísticas extraídas do comportamento de variáveis observadas no passado. Para serem minimamente funcionais, os modelos necessariamente desprezam informações que, a posteriori, levam suas previsões freqüentemente a passarem longe da realidade. O problema, porém, não está nos modelos; estes são supostamente apenas idealizações do mundo real. É no seu uso abusivo e descuidado que se encontra o problema. No caso dos empréstimos ¿subprime¿, os modelos de risco e seus usuários ¿se esqueceram¿ de que o excesso de liquidez observado até então era um fenômeno passageiro e não uma situação estrutural permanente.

O segundo problema se encontra no desalinhamento de incentivos provocado pela desintermediação financeira. Numa situação tradicional, um banco capta recursos por meio de depósitos e os empresta para os tomadores de crédito, carregando em seus livros o risco do crédito até a liquidação final da operação. Com as operações de securitização hoje em voga, o originador do crédito se desfaz rapidamente da operação, transferindo-a para investidores que passam a arcar com o risco do crédito. Tal perspectiva diminuiu os incentivos para que os emprestadores avaliassem diligentemente o crédito no momento de sua concessão. Em tese, mecanismos como o emprego de agências independentes de avaliação de risco e dispositivos contratuais de compartilhamento de riscos deveriam eliminar esse tipo de problema, mas, na prática, se observou sua insuficiência para manter íntegros os padrões de avaliação de risco na concessão dos ¿subprime¿.

O terceiro problema reside na subestimação, pelos bancos, dos potenciais riscos reputacionais associados às operações de securitização. Ao constituírem veículos de investimentos para carregar os ativos lastreados pelas hipotecas, os bancos se comportaram como se livrassem definitivamente do risco de crédito. Ao estourar a crise, a situação se mostrou completamente distinta. Os bancos tiveram de readquirir esses ativos para evitar sofrerem dano reputacional grave, caso seus clientes sofressem perdas por causa da falta de liquidez no mercado.

Os problemas acima descritos indicam que também houve erros na supervisão dos intermediários financeiros. Em particular, os processos de supervisão parecem ter falhado na avaliação da eficácia dos modelos de risco de crédito sob condições de estresse de mercado, bem como na avaliação dos planos de contingência dos bancos em situações de redução abrupta e generalizada da liquidez. Por isso, tornou-se inevitável a revisão dos processos de supervisão bancária, com vistas a minimizar a ocorrência de episódios semelhantes no futuro.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do BC, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo