Título: Farra sob sigilo
Autor: Franco, Carlos Alberto Di
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/02/2008, Espaço Aberto, p. A2

A Presidência da República tem pelo menos 150 cartões corporativos, conforme levantamento obtido pelo jornal O Estado de S. Paulo. Segundo a repórter Sônia Filgueiras, juntos, os titulares desses cartões gastaram no ano passado R$ 6,2 milhões. Do grupo, apenas 68 servidores tiveram suas despesas divulgadas no Portal da Transparência, mantido pela Controladoria-Geral da União (CGU) na internet. Ou seja, cerca de 80 funcionários ligados à Presidência realizaram despesas que foram omitidas no site. Os servidores cujos nomes e despesas não são divulgados no portal gastaram, conforme o levantamento, R$ 5,3 milhões ao longo de 2007, e R$ 1,4 milhão foram sacados em espécie.

A farra com o dinheiro público já derrubou uma colaboradora do presidente Lula. Matilde Ribeiro, ex-ministra da Igualdade Racial, pediu demissão, 19 dias depois de o Estado ter revelado que ela foi a campeã de gastos com o cartão. Incapaz de justificar os abusos com o cartão de crédito corporativo, seguiu o receituário dos envolvidos no escândalo do mensalão: renunciar e submergir. Na seqüência, o ministro do Esporte, Orlando Silva, anunciou a devolução de cerca de R$ 31 mil também gastos com o cartão.

Na lista dos funcionários da Presidência da República divulgada no portal estão dois servidores que fizeram compras quase integralmente em São Bernardo do Campo (SP), onde o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem residência. Nessa relação está também o tenente-coronel de Infantaria Rawlinson Souza, ajudante-de-ordens do gabinete do presidente da República. Ele gastou R$ 5,1 mil com papelaria e compras em supermercados em 2007.

O portal traz ainda os gastos realizados por dois militares destacados para fazer a segurança da filha do presidente Lula, Lurian Cordeiro Lula da Silva, em Florianópolis (SC). Um deles, João Roberto Fernandes Júnior, usou o cartão corporativo para pagar despesas em lojas de materiais de construção, autopeças, ferragens, supermercados e postos de gasolina. Entre abril e dezembro de 2007, foram gastos R$ 55 mil, como divulgou o jornal Folha de S.Paulo.

O que chama mais a atenção são os gastos na loja Comércio de Autopeças Badu. Desde o início de 2007, são gastos mensais, em vários dias diferentes, com notas que variam de R$ 100 a R$ 800, valor-limite de cada nota por dia. No dia 13 de novembro, por exemplo, Fernandes registra notas diferentes de R$ 650, R$ 800 e R$ 750. Segundo o controlador-geral da União, Jorge Hage, para gastos previsíveis é necessária licitação.

Segundo o chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general Jorge Félix, os gastos desses funcionários são sigilosos e não deveriam estar no Portal da Transparência. A afirmação do ministro está na contramão dos valores que compõem um país democrático. A sociedade tem o direito legítimo de saber o que se faz com o dinheiro do contribuinte. E a autoridade pública tem o dever de informar. Ademais, é ridículo ocultar gastos em supermercado, postos de gasolina, churrascaria, magazines e outros comércios sob o manto protetor da segurança nacional. O princípio constitucional da publicidade, pelo qual qualquer cidadão tem direito a obter das autoridades públicas informações de interesse pessoal e geral, é a pedra de toque da democracia. O secretismo de Estado é um perigo para as instituições e uma poderosa alavanca da corrupção.

¿A imprensa¿, dizia Ruy Barbosa, ¿é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam. (...) O poder não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça. Queiram, ou não queiram, os que se consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram paredes de vidro. Agrade, ou não agrade, as constituições que abraçaram o governo da Nação pela Nação têm por suprema norma: para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram escaninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe mistério; e toda encoberta, sonegação ou reserva, em matéria de seus interesses, importa, nos homens públicos, traição ou deslealdade aos mais altos deveres do funcionário para com o cargo, do cidadão para com o país.¿

Pois bem, caros leitores, um abismo separa os ideais de Ruy Barbosa dos usos e costumes dos nossos governantes. É preciso, insisto, derrubar a esdrúxula alegação de que as despesas presidenciais devem ser mantidas em sigilo por questão de segurança. Os brasileiros, como bem lembrou o jornalista Merval Pereira, estão cansados das mentiras seguidas de confissões públicas de acordos eleitorais azeitados a dinheiro; dos pagamentos na boca do caixa; do troca-troca de partidos estimulado a partir da Casa Civil, no que parecia uma estratégia política superior e se revelou, ao final, uma simples compra e venda de consciências; dos dólares na cueca e nas malas; do pagamento recebido em contas no exterior pelo publicitário oficial do governo; etc.

Precisamos rediscutir um novo conceito de espaço público que, sem prejuízo da presunção de inocência e da legítima preservação da intimidade, reconheça a imperiosa necessidade da informação transparente como valiosa arma da sociedade democrática no combate à chaga da corrupção.

A imprensa está fazendo um bom trabalho. Cabe ao governo, por iniciativa própria ou empurrado pela força investigativa do Congresso Nacional, lancetar um tumor que pode comprometer todo o organismo.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia

E-mail: difranco@ceu.org.br