Título: Davos ataca intervenção do Fed
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/01/2008, Economia, p. B4

Para muitos economistas, corte de juro deu impressão de que principal preocupação é salvar o mercado financeiro

Um painel interativo realizado no Fórum Econômico Mundial, na manhã de ontem, e envolvendo diversas personalidades avaliou o papel dos presidentes de bancos centrais, ao questionar se eles teriam perdido tanto o foco quanto o controle da governança econômica. Depois de um acirrado debate, 59% dos participantes, incluindo a platéia, responderam que sim, os bancos centrais perderam foco e controle, contra 41% que optaram pelo não.

Essa votação foi em linha com o ceticismo ou crítica com que boa parte dos economistas reunidos em Davos recebeu o corte de 0,75 ponto porcentual na taxa básica dos Estados Unidos, realizado pelo Fed (banco central americano) na terça-feira. Para muitos, o corte deu a impressão de que a principal preocupação do Fed é salvar participantes do mercado financeiro em dificuldade. Segundo Stephen Roach, do Morgan Stanley, a decisão do Fed foi ¿uma forma perigosa, desregrada e irresponsável de gerir a economia mundial¿.

O debate foi filmado e será exibido em várias partes do mundo pela CNBC, canal de notícias econômicas e financeiras. O painel de ontem teve como protagonistas o megainvestidor George Soros e o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz, dois contumazes críticos de como vem sendo gerida a globalização. As questões debatidas eram seguidas de uma votação da platéia.

As principais conclusões do debate indicaram que, com a economia global na sua pior crise em muitas décadas, os principais bancos centrais do mundo e as grandes instituições multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, não estão mais no comando da situação, e têm apresentado desempenho muito aquém do esperado. Por outro lado, atores nebulosos e quase desconhecidos do grande público, como os fundos soberanos de investimentos de países exportadores de petróleo e da Ásia, tornaram-se os novos ¿powerbrokers¿ (¿corretores do poder¿) globais.

No debate, Stiglitz, encarregado de ser o principal defensor da posição contra os bancos centrais, discorreu sobre vários erros do Fed, banco central americano, como o fato de seu ex-presidente Alan Greenspan ter defendido cortes de impostos em 2001 que desequilibraram a economia americana em termos fiscais. Ele notou também que o Fed foi complacente com o fato de que a renda da classe média e baixa dos Estados Unidos está estagnada há anos, e o mecanismo pelo qual o consumo americano continuou crescendo, com a extração de renda de imóveis supervalorizados, era claramente insustentável.

Com a missão de defender os BCs, John Snow, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, lembrou que o mundo vive (ou, pelo menos, vivia até a segunda-feira) a fase conhecida como a ¿Grande Moderação¿, em que a inflação caiu a níveis muito baixos, e houve crescimento forte e estável em grande parte da economia global. ¿Não sei se vocês se lembram de que tivemos inflação de até 18% nos Estados Unidos.¿

Ele atribuiu essa bonança ao bom desempenho dos bancos centrais nas últimas décadas. Quanto à capacidade dos bancos centrais de tomar decisões que interfiram de forma intensa e positiva para a economia global, Snow citou o corte de 0,75 ponto no Fed terça-feira. ¿A pergunta sobre se os BCs ainda são capazes de agir de forma ousada foi respondida ontem.¿

Lawrence Summers, ex-secretário de Tesouro dos EUA e um dos economistas mais influentes do mundo, optou pelo meio-termo. Ele reconhece que os BCs são em boa parte responsáveis pela boa forma da economia global nas últimas décadas, mas falharam nos dois últimos anos por não tentarem conter as diversas bolhas que se formaram (imóveis nos EUA e mundo desenvolvido, ações asiáticas, commodities), e falharam especialmente nos últimos seis meses, por terem reagido lentamente no estouro das bolhas.

FUNDOS SOBERANOS

Após o debate sobre os fundos de investimento soberanos, 81% dos participantes votaram que os fundos de investimento soberanos, os fundos de hedge (especulativos) e os fundos de private equity são, de fato, os novos ¿powerbrokers¿ da economia global. Ibrahim S. Dabdoub, principal executivo do Banco Nacional do Kuwait, estimou que aquelas três categorias de investimento já acumulem US$ 8 trilhões, cifra que pode chegar a US$ 20 trilhões nos próximos quatro anos.

¿É muito dinheiro, até no Kuwait¿, disse Dabdoub, arrancando risos da platéia. O Kuwait tem entre US$ 700 bilhões e US$ 900 bilhões em investimentos soberanos. O conjunto dos fundos soberanos, segundo o executivo, está próximo de US$ 3 trilhões. Dabdoub observou que a recente compra de uma parcela do Citigroup pelo fundo soberano do Abu Dhabi (estimada em US$ 7,5 bilhões) equivale à receita de petróleo obtida em não mais que um mês pelo país.

A preocupação dos países ricos em relação aos fundos soberanos é com a possibilidade de compra de empresas nacionais estratégicas por investidores pouco transparentes controlados por governos estrangeiros. Angel Gurría, secretário-geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), rechaçou com veemência estes temores.

¿Já temos protecionismo no comércio, nos investimentos e agora querem criar protecionismo contra os fundos soberanos¿, alertou. Ele lembrou que, mesmo com todo o crescimento previsto, os fundos soberanos continuarão a ser apenas uma parte minoritária da poupança global, e não maiores do que outros participantes, como os fundos de pensão.

XERIFE GLOBAL

No último tema do debate, 81% dos participantes votaram contra um ¿novo xerife¿ para policiar os mercados financeiros globais¿, posição defendida por George Soros. O investidor húngaro lembrou que ¿os mercados deixados a si mesmos vão aos extremos da euforia e do desespero¿, e culpou os governos de Ronald Reagan, no EUA, e de Margaret Thatcher, no Reino Unido, pela desregulamentação do mercado financeiro.

A maior parte dos debatedores concordou que a supervisão dos novos produtos financeiros complexos - muito dos quais estão na origem da atual crise - deixa a desejar, e o FMI está perdido no debate sobre a atual crise global. O consenso, porém, é que não se devem criar novos órgãos burocráticos, mas sim reformular a atual estrutura para que ela possa dar conta da tarefa de entender, interferir e prevenir crises numa economia global em velocíssima mutação econômica e financeira.