Título: O governo descolado
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/01/2008, Notas e Informações, p. A3
Sempre houve pessimistas e otimistas nos debates sobre conjuntura do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, e a divisão se mantém neste ano, mas com uma diferença importante. A polêmica mais intensa não é mais sobre as condições da economia americana. A crise é séria, admite a maioria dos economistas mais conhecidos, e a palavra recessão já é usada correntemente por conferencistas e debatedores. Nouriel Roubini, consultor, e Stephen Roach, do Banco Morgan Stanley, já não atraem atenções com suas análises sombrias sobre a economia norte-americana. A discussão mais envolvente é sobre os efeitos de uma recessão nos EUA nos países emergentes. Os otimistas afirmam que as economias emergentes manterão seu dinamismo, apesar dos problemas na potência número um, e darão o impulso necessário para movimentar outros países. Essa é a chamada tese do descolamento (decoupling). O mundo, segundo seus defensores, não depende mais de um único motor para continuar avançando.
Essa tese teve mais defensores até o fim do ano passado, antes das jornadas mais negras das bolsas de valores. Economistas do FMI e do Banco Mundial chamaram a atenção, em outubro, para o bom desempenho da maior parte das economias em desenvolvimento. Em 2008, segundo suas projeções, essas economias perderiam algum impulso, mas continuariam exibindo maior dinamismo do que as dos países do mundo rico. China e Índia, segundo essas análises, compensariam em boa parte a desaceleração do mundo mais desenvolvido. Na América Latina, o Brasil funcionaria como um impulsor de crescimento.
Pesquisa com executivos de cem países, concluída no fim do ano pela PricewaterhouseCoopers, revela que executivos de empresas da Índia, da China, da Rússia e do Brasil são os mais otimistas quanto às possibilidades de expansão dos negócios em 2008. Noventa por cento dos indianos disseram acreditar nessa possibilidade. No Brasil, a parcela foi de 63%, quase o dobro da porcentagem de otimistas dos EUA.
A idéia do descolamento começou a ser contestada com algum vigor nos últimos dias, quando a insegurança dos investidores tomou conta das bolsas e o risco de recessão foi reconhecido pelas autoridades americanas.
Autoridades de países emergentes, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath, continuam sustentando a idéia da imunidade dos grandes emergentes à crise americana. A tese pode ser defensável, mas, para sustentá-la, é preciso menosprezar alguns detalhes importantes.
O mais importante é o tamanho da economia americana, que corresponde a 25% do produto bruto mundial. O consumo dos americanos, 70% do PIB dos Estados Unidos, correspondeu no ano passado a uns US$ 9,5 trilhões. Esse montante, como lembrou Stephen Roach, equivale a seis vezes o consumo combinado da Índia e da China.
Qual o crescimento das economias indiana e chinesa necessário para compensar uma retração do consumo nos Estados Unidos? Além do mais, as economias da China e da Índia também dependem da animação dos consumidores americanos e europeus - e a Europa, já não muito dinâmica, certamente será afetada pelo esfriamento da atividade nos EUA.
O Brasil e outros latino-americanos certamente estão mais preparados do que há cinco ou seis anos para enfrentar uma desaceleração das grandes economias. Mas tomar a tese do descolamento como base para a política econômica em 2008 é uma imprudência. Nada indica, no entanto, que o governo esteja disposto a mudar de atitude. Suas prioridades, neste momento, são a busca de novas fontes de receita tributária, a distribuição de cargos para os aliados e a manutenção da gastança improdutiva. Nada disso contribuirá para tornar as empresas brasileiras mais capacitadas para competir internacionalmente, numa fase de concorrência mais acirrada, nem dará ao País a flexibilidade necessária para se ajustar às condições externas menos favoráveis. Se ficar demonstrado que os emergentes estão pelo menos parcialmente descolados da economia americana e de suas dificuldades, tanto melhor. O governo é que não pode descolar-se da realidade, muito preocupante, que se apresenta a todas as pessoas informadas