Título: Doha, no limite do ceticismo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2008, Notas e Informações, p. A3
A representante do Comércio dos Estados Unidos, Susan Schwab, chegou a Davos, na Suíça, com uma surpreendente mensagem de otimismo. Ela acredita que há uma grande possibilidade de se realizarem avanços importantes na Rodada Doha de negociações comerciais, nos próximos meses, e até de se concluir um acordo neste ano, antes do fim do mandato do presidente George W. Bush. A rodada, afirmou a embaixadora, está no topo da agenda americana e Bush está comprometido com a sua conclusão.
Na visão de um cético, essa demonstração de empenho seria uma forma de responsabilizar outros governos por um provável fracasso das negociações durante a gestão Bush.
A representante americana continua a cobrar dos emergentes concessões significativas no comércio de produtos industriais e uma abertura maior para o setor de serviços. Mas não se trata, politicamente, apenas de uma cobrança. A mensagem, nada sutil, é a seguinte: a superação do impasse depende da boa disposição dos governos brasileiro, indiano, chinês, argentino e de outros países de nível similar de desenvolvimento.
Sem desconhecer esse jogo, já usado por um antecessor de Schwab, Robert Zoellick, depois do fiasco da conferência ministerial de Cancún, em 2003, vale a pena examinar alguns dos argumentos apresentados pela negociadora americana durante uma sessão do Fórum Econômico Mundial.
Um ponto especialmente notável foi o seu reconhecimento de que a agricultura de seu país, protegida e beneficiada por subsídios, recebe uma atenção política desproporcional à sua importância na economia dos Estados Unidos. Talvez os políticos americanos, disse Schwab, devessem dar maior atenção a outros setores com muito maior peso, como indústria e serviços, que serão beneficiados por uma liberalização dos mercados. E recomendou que empresários desses setores pressionem os governos pela conclusão da rodada.
A embaixadora reclamou do protecionismo europeu, dizendo que alguns dos produtos agropecuários mais competitivos dos Estados Unidos, como carnes, milho e soja, são barrados na União Européia com pretextos de ordem sanitária. Os europeus têm resistido especialmente à importação de produtos geneticamente modificados - sem base científica, segundo o governo americano.
Ao referir-se a barreiras não sanitárias, a representante americana tocou num ponto importante das negociações comerciais. Se a rodada for concluída, as tarifas sobre produtos agrícolas poderão ser substancialmente reduzidas, mas negociadores europeus insistem na manutenção e na expansão de outras formas de protecionismo, como critérios ambientais, sociais e sanitários. O uso dessas formas disfarçadas de protecionismo tem preocupado os exportadores e os negociadores brasileiros.
Segundo Susan Schwab, um amplo acordo de liberalização comercial poderá ficar muito mais difícil, se não for concluído neste ano. Ela pode estar certa. Se não houver acordo, ou se, no mínimo, as linhas mais importantes de um acordo não forem definidas neste ano, a Rodada Doha poderá ser emperrada por novas dificuldades políticas. Os pré-candidatos à Casa Branca, principalmente os democratas, são sensíveis às pressões protecionistas e já houve quem prometesse até uma revisão geral dos tratados comerciais em vigor, incluído o Nafta. O novo presidente poderá ser tentado a retomar do início a negociação global, incluindo na pauta exigências trabalhistas e ambientais ditadas pelos sindicatos, pelos setores menos competitivos e pelos grupos políticos contrários à globalização. Essa decisão coincidiria com as posições defendidas por numerosas ONGs européias que se mantêm mobilizadas, permanentemente, contra a abertura dos mercados do bloco. A campanha contra os biocombustíveis de origem agrícola pode ser um indício de como se poderão complicar as discussões comerciais.
Neste sábado, duas dezenas de ministros dos mais ativos nas negociações da Rodada Doha e o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, deverão almoçar, em Davos, como convidados do governo suíço. Embora haja razões suficientes para pessimismo, essa pode ser uma das últimas oportunidades para se desemperrar as negociações globais de comércio. Se o empreendimento fracassar neste ano, ninguém pode dizer quando e como será reativado.