Título: O jogador que pôs o Fed numa armadilha
Autor: Lapouge, Gilles
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2008, Economia, p. B3

O Société Générale é o terceiro maior banco da França. Com capital próprio de 29 bilhões e 120 mil funcionários, ele é admirado por sua sabedoria. Ora, no último fim de semana, ele quase desapareceu, se evaporou, foi à lona. Ele não desapareceu, se salvou. Mas os desgastes são gigantescos.

Nesta época de globalização, as doenças se transmitem de um continente a outro com a velocidade do raio: talvez a brusca aceleração da crise financeira mundial no início da semana e a redução de emergência das taxas de juros americanas se expliquem pelo estranho fim de semana do Société Générale.

Foi na sexta-feira retrasada que um controle de rotina nesse banco detectou uma anomalia: ¿Era uma posição oculta, alojada fora do campo de atividade de nossos mercados. E era enorme¿. De fato, essa ¿posição oculta¿ era da ordem de 50 bilhões! Portanto, detecta-se essa verruga um pouco como um astrônomo descobre nas profundezas escuras do céu uma galáxia de mil bilhões de sóis que passou despercebida dos telescópios.

Agitação de combate. O comando supremo, em segredo absoluto, toma medidas de urgência para estancar o mal. Ele avalia as perdas: 5 bilhões. Quantia colossal, desaparecida como uma nuvem noturna. O presidente-executivo do Société Générale, Daniel Bouton, apresenta a demissão. O banco recusa. Ele aceita ficar.

Como pode acontecer essa fraude exorbitante? Uma coisa é certa: foi praticada por um único homem. Um trader do Société Générale, Jerome Kerviel, empregado subalterno de 31 anos. Sua aparência era enganadora. Com seu ar de coroinha, ele não poderia ¿fazer mal a uma mosca¿. É fato que era forte em informática, mas, quanto ao resto, era um tipo apagado, pouco falador, discreto, sem necessidades, trabalhando o tempo todo.

Hoje, ele é célebre. Não só na City de Londres ou em Wall Street. Seu nome fervilha nos sites da internet por todo o planeta. Ele é, a um tempo, o sonho do mundo e o pesadelo. Com um único salto, ele se alçou à condição de maior fraudador de todos os tempos, batendo o recorde de Nick Leeson, empregado do banco Barings, que havia acumulado U$ 1,2 bilhão de perdas ocultas numa conta secreta. Provocou a falência do banco e ganhou seis anos de prisão.

Seu imitador francês o deixa muito para trás com os 5 bilhões engolidos. Suas motivações? Não se sabe. Ele foi interrogado, mas não se tem a impressão de que fez aquilo para meter bilhões no bolso. Por quê, então? Por jogo, por loucura. E sobre o método não se sabe muito mais.

Eu questionei alguns especialistas. ¿É muito simples. Ele passava, por exemplo, uma ordem de compra e a ocultava com uma outra ordem, fictícia, de venda. No fim, o banco via apenas o saldo das duas operações, isto é, nada¿. Eu disse a esses especialistas que não havia compreendido nada. ¿Nós tampouco¿, eles me responderam, afavelmente.

Ontem à tarde, uma nova ¿metástase¿ da fraude foi evocada. Ela faz o drama passar do quadro nacional para horizontes mundiais. Eis como.

Pode ser que o jovem apagado que passava ordens monstruosas às ocultas tenha sacudido o Federal Reserve (Fed), o banco central americano, e provocado a redução emergencial e excepcional das taxas de juros americanas.

Eis o filme do drama: no domingo à noite, uma vez descobertas as malversações, o Société Générale, sem avisar ninguém, toma medidas de urgência. E joga pesado. ¿Ele joga sua pele¿. O que ele faz? Vende, por 48 bilhões, contratos futuros sobre o índice Eurostoxx 50, o Dax alemão e o Footsie inglês. A entrada repentina de 48 bilhões provoca convulsões no mercado. Sobre o Eurostoxx 50, os volumes costumam girar em torno de de 75 bilhões. Resultado: essas vendas massivas e inesperadas fizeram despencar as bolsas européias.

Na segunda-feira de manhã, o Eurostoxx, o Footsie e o Dax perdiam de 6% a 7%. Os operadores começaram a olhar de soslaio para o Société Générale. Estamos na ¿segunda-feira negra¿. Ora, nesse dia, os mercados americanos estavam fechados porque os americanos celebravam a morte de Martin Luther King. O banco central americano, constatando a queda súbita, irracional e extrema de todas as bolsas européias, foi tomado de pânico e decidiu abrandar, numa escala que pareceu, no momento, desproporcionada, sua política monetária.

E eis como um homem jovem muito solitário e muito forte em matemática teria armado uma armadilha, sem a intenção disso, ao formidável Fed americano. Sim, ainda bem que esse jovem tão dotado estava realmente sozinho nisso! Ainda bem que ele se contentava em jogar como se joga até o delírio, até a overdose, até a vertigem, um jogador enlouquecido!

*Gilles Lapouge é correspondente em Paris