Título: Uma Radiobrás sem eira?
Autor: Bucci, Eugênio
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/02/2008, Espaço Aberto, p. A2

A Medida Provisória (MP) nº 398, de 9/10/2007, que autorizou o governo federal a criar a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável pela TV Brasil, está prestes a perder a eficácia. Prorrogada por 60 dias em dezembro, ela agora bate no prazo fatal: ou é aprovada, mesmo que com modificações ou substituição, ou morre. Se morrer, levará junto a EBC, que já começou a operar com funcionários próprios. Mas, atenção, não arrastará consigo a TV Brasil.

A explicação é simples. Na hipótese de naufrágio da EBC, a TV Brasil poderá continuar suas transmissões abrigada pela velha Radiobrás - esta deveria ser extinta para dar lugar à nova empresa, mas se manteve em atividade. Assim, os que pretendiam derrotar a MP para forçar o fechamento da TV Brasil caíram do cavalo. Isso não significa que a matéria se tenha tornado irrelevante. Ao contrário. A sobrevivência ou não de mais um canal de TV da administração pública é o de menos (já há dezenas de emissoras desse tipo no País, tanto no âmbito estadual como no federal). O debate central tem que ver, isto sim, com a estrutura que deve ter uma instituição moderna de comunicação pública, agenda que merece a melhor atenção dos representantes do povo. É a primeira vez, em décadas, que o tema entra para valer na pauta do Congresso.

Se a questão se resumisse a lançar mais uma estação de TV, o governo federal não teria de inventar empresa alguma. A ele bastariam as entidades que já existem: a Radiobrás, cujos diretores e conselheiros são nomeados e demitidos pela Presidência da República a qualquer tempo; e a TVE do Rio de Janeiro, que, embora tenha a forma de organização social e não de empresa pública, também tem seus conselheiros e dirigentes feitos e desfeitos pelo Palácio do Planalto. Juntas, as duas somam aproximadamente 2. 500 empregados e contam com emissoras de rádio e TV em Brasília, no Rio de Janeiro e no Maranhão.

Além disso, essas velhas estruturas guardam a cultura de promoção pessoal das autoridades, coisa que alguns expoentes do Executivo, de variados matizes partidários, apreciam em silêncio. Nos canais oficiais e (supostamente) públicos do Brasil inteiro, a chapa branca é a regra, ressalvadas as honrosas exceções - que existem, ou existiram, ajudando a demonstrar a natureza antidemocrática da velha comunicação governista. Portanto, mais grave do que o risco de a TV Brasil passar a bajular governantes - um risco real, mas um risco futuro - é a cultura de subserviência cristalizada do presente.

Em resumo, a MP 398 não surgiu porque o governo precisa de autorização para abrir um canal de TV, mas porque ele precisa propor mudanças no modelo sabidamente ultrapassado, se quiser conquistar legitimidade para a sua iniciativa. De poucos anos para cá, a opinião pública despertou para a gravidade da usurpação que vitima emissoras públicas e reclama por uma renovação. A MP veio prometer uma resposta a isso. Seu problema é que promete, mas não entrega.

Há mais debilidades que acertos na MP, a começar por sua natureza de medida provisória, que não deixa muito espaço para a elaboração legislativa - um projeto de lei seria mais adequado. Quanto aos acertos, registre-se o principal: fundir a Radiobrás e a TVE do Rio numa nova instituição, que centralize operações hoje dispersas, por vezes superpostas e redundantes, constitui um passo de racionalidade administrativa. No mais, a EBC tem o semblante - e a nomenclatura - de uma Radiobrás recauchutada. A velha estatal nasceu nos anos 70 com o nome de Empresa Brasileira de Comunicação. A estatal nova se chama Empresa Brasil de Comunicação e, em muitos aspectos, é isso mesmo: uma Radiobrás sem o sufixo 'eira'. Vejamos mais de perto a sua constituição.

A exposição de motivos assinada pelos ministros Franklin Martins, Dilma Rousseff e Paulo Bernardo fala em 'preocupação presente de garantir a autonomia da nova empresa, por meio da criação de mecanismos institucionais protetores dos dois flancos que poderiam se constituir em ameaças: a subordinação às diretrizes do governo e o condicionamento às regras estritas de mercado'. Muito bem. Ocorre que tanto a MP como o Estatuto da EBC, apresentado pelo Decreto Presidencial nº 6.246, de 24/10/2007, não dão conseqüência àquela 'preocupação'. Em relação à falta de independência do modelo antigo, o avanço é quase nulo. Basta ver como se compõe o 'órgão de orientação e de direção superior da EBC', o Conselho de Administração (ver artigos 14 e 15 do Estatuto e artigos 12 e 13 da MP). São cinco membros. O ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República indica dois deles. O terceiro é o diretor-presidente da empresa. Os outros dois vêm do Ministério do Planejamento e do Ministério das Comunicações. A esse conselho cabe eleger e destituir os diretores da EBC, à exceção de dois, o diretor-presidente e o diretor-geral, nomeados diretamente pelo presidente da República. Ora, pode haver estrutura mais passível de 'subordinação às diretrizes do governo'? Pode haver algo de mais semelhante à antiga Radiobrás?

A novidade se resume à presença de outro conselho, o Curador, que tem um representante eleito pelos funcionários e 'representantes da sociedade civil' - designados, note o leitor, também pelo presidente da República. O Conselho Curador é vistoso, mas não manda. Embora esteja autorizado a, por maioria absoluta, imputar voto de desconfiança aos diretores, tem funções mais consultivas que deliberativas.

Agora, o Congresso pode transformar essas tímidas adaptações em uma renovação de verdade. Recusar sumariamente a MP não seria um gesto sábio. Os parlamentares têm nas mãos a chance de criar - ou abrir caminho para que seja criada - uma instituição de comunicação pública que seja de fato independente do governo.

Eugênio Bucci, jornalista, membro eletivo do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo), professor do Instituto de Estudos Avançados da USP, foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007

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