Título: Movimento negro liga queda a preconceito
Autor: Arruda, Roldão
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/02/2008, Nacional, p. A6

Líderes rejeitam irregularidade, mas estranham repercussão do caso

Lideranças do movimento negro lamentaram ontem os equívocos cometidos pela assistente social Matilde Ribeiro, que resultaram na sua saída da Secretaria da Igualdade Racial. Em declarações ao Estado, vários representantes do movimento destacaram que ela deveria ter tido mais cuidado com a administração dos recursos públicos. Ao mesmo tempo, porém, destacaram que a forte repercussão do episódio e a demissão estão relacionadas ao fato de Matilde ser negra e mulher.

¿A ministra cometeu erros que jamais poderia ter cometido¿, disse o jornalista Dogival Vieira, editor da Agência Afropress e dirigente do Movimento Brasil Afirmativo. ¿Além da falta de zelo com os recursos públicos, que é um erro grave, ela se esqueceu que vivemos num país racista, onde não existe nenhuma flexibilidade em relação a negros, especialmente quando estão em posição de destaque.¿

Vieira destacou que os gastos de assessores diretos da Presidência são muito maiores que os da ministra que se demitiu: ¿Ela foi usada como bode expiatório. Caiu porque o governo quer usar isso para impedir a criação de uma CPI que investigue a fundo a farra dos cartões.¿

A militante e líder religiosa Valkíria de Souza Silva, a Kika, que faz parte da Coordenação Nacional de Entidades Negras, disse que é impossível não relacionar a demissão ao avanço de políticas que estariam servindo às populações excluídas da sociedade brasileira. ¿Há uma conotação racista no episódio, à medida que significa uma reação de setores contrários às políticas que beneficiem os excluídos por gênero, raça, classe¿, disse. ¿Espero que o sucessor de Matilde tenha a mesma disposição dela no combate aos setores preconceituosos, racistas, homofóbicos.¿

REGULAMENTAÇÃO

O professor e administrador de empresas Hélio Santos, um dos mais antigos e respeitados militantes da causa de políticas afirmativas para negros no País, observou que a queda da ministra ocorreu no meio de uma área nebulosa. ¿Lamento todo esse episódio. Não defendo irregularidades, não isento a ministra de responsabilidades, nem defendo que os negros utilizem mal o dinheiro público. Mas acho que houve um tratamento diferenciado no caso dela. Ora, só agora o governo está dizendo que vai regulamentar o uso dos cartões corporativos - o que significa que não existia a regulamentação e a ministra não deveria ter caído por causa disso. Para mim, trata-se de uma área nebulosa: foi preciso cair uma ministra negra para se começar a pensar em regulamentação.¿

Na opinião do professor, a ministra poderia ter caído por outro motivo: o seu fraco desempenho à frente do ministério. ¿A Secretaria da Igualdade Racial era uma espécie de ficção: a ministra era mal assessorada, tinha um orçamento baixíssimo e mesmo assim não o executava inteiramente. No ano passado só executou 38% do orçamento.¿

O antropólogo Kabengelê Munanga, estudioso de questões relacionadas ao racismo e professor da pós-graduação da USP, não relacionou a demissão a qualquer tipo de preconceito: ¿O que sabemos até agora é que a ministra se equivocou no uso do dinheiro público, o que é lamentável. Não pode haver nenhuma confusão nessa área, mesmo quando se trata de um vintém, um real.¿

Por outro lado, o professor enfatizou que as ações da secretaria representaram um avanço importante no combate ao racismo, que ¿embora não seja institucionalizado aqui, como foi na África do Sul ou nos Estados Unidos, existe e cria desigualdades e vítimas¿.

Munanga acredita que a secretaria especial será mantida em funcionamento. ¿Ela é uma reivindicação do movimento negro, atende a uma demanda da sociedade e não pode morrer por causa dos erros de um dirigente ou de uma ministra.¿