Título: Um massacre que nos envergonha
Autor: Cavalcanti, Sandra
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/02/2008, Espaço Aberto, p. A2

O novo Código de Trânsito Brasileiro trouxe enormes benefícios à população. A exigência do cinto de segurança, as multas pesadas por avanço de sinal, as punições por invasão de faixas de pedestres, as perdas de pontos por desobediências aparentemente inocentes, tudo isso veio criar no motorista brasileiro uma nova visão de suas responsabilidades. Os novos recursos que a tecnologia pôs à disposição das autoridades contribuíram para que a vigilância fosse feita de forma mais isenta. Não dá para tentar corromper um pardal eletrônico... Mas, acima de tudo, o código é particularmente severo quando se trata de julgar o comportamento de motoristas que dirigem bêbados, drogados ou rebeldes em relação às normas mais corriqueiras.

Infelizmente, mesmo admitindo que ele ainda não atenda a todos os avanços conquistados em outros países, temos de reconhecer que ficou muito melhor do que o anterior. Este tem mais poder de fogo contra os criminosos do volante, tem mais capacidade de atuação sobre as chamadas pequenas infrações e é mais duro nas penalidades.

No entanto, a realidade indica que, mesmo que esse código fosse uma perfeita obra de legislação sobre o assunto, ainda assim ele não conseguiria, como não está conseguindo, influir no comportamento das pessoas.

O motorista só se policia quando movido pelo medo das penalidades ou pelo prejuízo. Seu comportamento melhor não nasce da consciência de que o ser humano deve agir de forma prudente, cordial, solidária, atenta, digna de seres humanos. Aliás, esta consciência parece que não existe em quem anda de patinete, de bicicleta, de moto, de lambreta, de carro, de ônibus, de caminhonete, de van ou de caminhão. A falta dessa consciência não está nos veículos, está nas pessoas. O veículo não importa. Importam as pessoas. Nós e o outro! Aquele outro ser humano que vejo ali, naquele instante, que cruza o meu caminho e cuja vida pode depender do meu modo de pensar nele. Ele é o meu próximo.

O modo de dirigir qualquer veículo revela a personalidade de cada um. Meu pai, parodiando um famoso dito popular, dizia: ¿Mostra-me como guias e te direi quem és!¿

No caos urbano, em que vive mergulhada hoje mais de metade da população brasileira, o comportamento de quem não leva em conta o próximo pode ser conferido a cada momento. Que ferocidade! Que má vontade! Que imprudência! Que inconsciência! Que irresponsabilidade! Que desrespeito às leis e às regras!

Para piorar, as máquinas estão cada dia mais mortíferas. Os carros estão cada vez mais potentes, correm mais, arrancam com mais presteza. Defendem-se melhor nas batidas e capotagens. Freios paralisantes. Sacos de ar para amenizar os choques internos. Faróis de todo tipo. Cintos de segurança. Nos ônibus e caminhões, a direção hidráulica e os freios são mais confiáveis. Infelizmente, não se pode dizer o mesmo dos motoristas, muitas vezes trabalhando no limite de suas forças.

Para nossa falta de sorte, a recuperação de várias estradas privatizadas, com pisos mais seguros, acabou sendo um convite aos excessos de velocidade, com massacres nos feriadões e nas festas de fim de ano. São batidas tão violentas que ninguém consegue escapar com vida. O número de mortes por colisão nessas estradas confortáveis aumentou sensivelmente. Em mais de 90% dos casos a responsabilidade não é da máquina. É humana. Ultrapassagens absurdas, excesso de velocidade, desrespeito às leis, muita bebida e muita droga!

Nas estradas que dependem de governos, o quadro é ainda pior: buracos, pontes pela metade, desmoronamentos, falta de sinalização e animais soltos. As federais são as campeãs de mortes, todos os anos. No ano passado, morreram mais pessoas nessas vias do que soldados americanos desde o início da guerra no Iraque. Morreram mais do que os atingidos por terríveis doenças. Mais do que os que sofreram enchentes ou secas. Talvez só percam para as vítimas das lutas entre as quadrilhas de traficantes que hoje dominam nossas infelizes favelas.

Como enfrentar tal massacre? A resposta é uma só: o Brasil tem de lutar para mudar este inacreditável comportamento de seus motoristas. Reeducar-lhes a alma e o coração. Fazê-los enxergar o seu próximo. O nosso motorista ainda não descobriu que o próximo existe e que ele deve amá-lo. Ele está ali, bem pertinho. Existe uma vida ali, no outro carro. Ali, na esquina. Ali, no trem. Ali, no caminhão. Ali, na moto. Ali, na bicicleta. Ali, na porta da escola.

Nossos motoristas parecem estar sempre em guerra. Se o outro pisca a luz, pedindo para entrar, ele não deixa. Se o outro só está à sua frente, ele cola em sua traseira, acende faróis, buzina, exige que ele desapareça... Se o outro pára, por segundos, para deixar entrar ou sair uma pessoa idosa, com dificuldades, ele fica por trás azucrinando, impaciente. E se for possível, ultrapassa pela direita, contra todas as normas de segurança. A maior parte dos desastres acontece em conseqüência dessa disputa irracional.

Além disso, esse nosso motorista confia na sua impunidade. Acha que pode driblar a lei, corromper o guarda, usar mal a sua autoridade. Falta nele o hábito de um comportamento cordial, civilizado, urbano, nascido da profunda noção de que o próximo deve ser respeitado e amado.

Na passagem do milênio, escrevi um artigo exatamente com esse título. Mais de sete anos se passaram. Tudo piorou! O número de carros nas ruas é mirabolante! As motos zunem como vespas à nossa volta. Nas estradas, as cargas mostram um Brasil sem navegação e sem ferrovias. Mas o mais triste é que o motorista brasileiro não melhorou de alma. O próximo, para ele, não existe.

Esperemos as estatísticas do feriadão de carnaval...

Sandra Cavalcanti, professora, jornalista, foi deputada federal constituinte, secretária de Serviços Sociais no governo Carlos Lacerda, fundou e presidiu o BNH no governo Castelo Branco E-mail: sandra_c@ig.com.br