Título: Bispo que incentiva invasões no Pontal expõe divisão na Igreja
Autor: Arruda, Roldão
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2008, Nacional, p. A12

D. José Maria defenderá sem-terra na CNBB, no momento em que clero diverge sobre direito à propriedade

Roldão Arruda

No decorrer desta semana, o bispo da diocese paulista de Presidente Prudente, d. José Maria Libório Saracho, vai se reunir em São Paulo com colegas da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O objetivo oficial do encontro é a análise das contas da Regional Sul 1 da CNBB - da qual o bispo de Prudente é conselheiro. Mas já se sabe que a conversa será dominada por outro tema: d. José Maria vai explicar aos bispos as razões das declarações que fez na semana passada, incentivando as invasões de propriedades rurais no Pontal do Paranapanema - uma das regiões mais conflituosas do País, incrustada no interior da área eclesiástica que ele administra.

As declarações do bispo provocaram constrangimento na cúpula da CNBB, que pôs representantes em campo para esclarecer duas coisas: 1) o pensamento do bispo não representa o pensamento da cúpula organização; 2) a Igreja respeita a propriedade privada como um direito natural.

Na reunião em São Paulo, d. José Maria apresentará aos seus colegas um relato histórico sobre os conflitos e tentará convencê-los do seguinte: ele não estimula invasões de propriedades privadas, porque no Pontal a maior parte das terras é grilada, ou seja, foi ocupada de forma irregular, sem documentação legal. Por esse raciocínio, o invasor é quem está dentro da propriedade - que seria pública - e não quem a invade.

D. José Maria, espanhol de origem basca que completou 76 anos em novembro e está a caminho da aposentadoria, aguardando apenas a nomeação de seu substituto pelo papa Bento XVI, conseguiu com suas declarações revolver duas antigas polêmicas. A primeira delas arrasta-se na Justiça desde 1930, quando o bispo ainda estava por nascer, e envolve a Igreja de forma indireta.

Trata-se da questão da legalidade dos títulos de terras do Pontal. Já foi demonstrado pela Justiça que a cadeia dominial de parte deles padece de um vício na sua origem: a assinatura com a qual o frei Pacífico do Monte Falco atribuiu a propriedade de uma vasta área da região a um de seus paroquianos, que depois a desmembrou em várias partes para revender.

A tal assinatura foi aposta ao documento de sacristia em 1856. Detalhe importante: o frei estava morto havia dez anos. Até hoje não existe uma jurisprudência sobre as terras em litígio no Pontal e cada caso é discutido durante anos na Justiça, com detalhes que remontam às capitanias hereditárias.

FISSURA INTERNA

A segunda polêmica expõe uma fissura no interior da Igreja. Ao se posicionar a respeito das declarações de d. José Maria, bispos e pensadores católicos acabaram revelando conceitos diferentes a respeito do direito à propriedade e, por tabela, das invasões de terras.

Tanto o secretário-geral da CNBB, d. Dimas Lara Barbosa, quanto o secretário da Regional Sul 1, d. Airton José dos Santos, deram declarações públicas ressaltando que a doutrina social da Igreja respeita a propriedade privada como um direito natural e, portanto, inviolável. D. Airton, que participa da reunião desta semana em São Paulo, enfatizou que a Igreja não apóia invasões de propriedades nem em casos extremos.

No Mosteiro de São Bento, no Rio, d. Estevão Bittencourt, professor de teologia e respeitado divulgador da doutrina católica, foi mais enfático. ¿Considerando que a propriedade é um direito natural, a invasão de terras é uma violência inaceitável¿, disse o frade beneditino ao Estado.

D. Tomás Balduíno, que aos 86 anos atua como um dos mais ativos conselheiros da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade da qual d. José Maria também faz parte, tem outra opinião. Para começo de conversa ele tem ojeriza à expressão invasão, substituindo-a sempre por ocupação - que teria um sentido político mais adequado.

¿Considero fruto da cegueira e do preconceito a tentativa de nivelar as ocupações dos sem-terra às ações de quadrilhas que violam propriedades privadas¿, disse ele. ¿Os sem-terra não ocupam terras para aumentar suas propriedades, não roubam a terra, não são quadrilheiros. A ocupação tem o sentido de uma denúncia política - para mostrar à sociedade que o Estado não executa a reforma agrária que está determinada pela Constituição do Brasil.¿

Para fundamentar sua tese, d. Tomás gosta de lembrar um documento que não foi redigido por ninguém da Igreja, mas, na opinião dele, poderia fazer parte de sua doutrina. Trata-se do voto proferido em 1996 pelo então ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luiz Vicente Cernicchiaro, concedendo habeas-corpus a um grupo de sem-terra acusado de esbulho possessório - ou apropriação de imóvel alheio.

Dizia o ministro, lembrado pelo bispo, que: ¿No esbulho possessório o agente dolososamente investe contra a propriedade alheia, a fim de usufruir um de seus atributos. Ou alterar limites do domínio para enriquecimento sem justa causa.¿ No caso dos sem-terra, porém, era diferente: ¿Revela sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual seja, a implantação da reforma agrária.¿

EQUILÍBRIO

O padre José Maria Pereira, que é reitor da Universidade Católica de Petrópolis e ostenta em seu currículo o título de mestre em direito, defende uma posição de equilíbrio: ¿A doutrina social da Igreja condena os grandes latifúndios improdutivos e apóia a reforma agrária, que, além de necessidade política, é uma obrigação moral da sociedade. Mas jamais se deve usar a violência.¿

Ao apoiar as invasões de maneira indiscriminada, diz o pensador católico de Petrópolis, a Igreja corre o risco de acabar apoiando a baderna: ¿No meio dos sem-terra existem pessoas bem-intencionadas, outras que são levadas pela multidão e também as que se interessam apenas pela baderna. Temos notícias de pessoas que invadem, conseguem o lote, vendem logo em seguida, sem produzir nada, e vão incentivar novas invasões logo adiante.¿

Em relação às declarações do bispo de Prudente, de que a invasão é uma forma de chamar a atenção das autoridades para a reforma, o seu xará de Petrópolis diz: ¿Se há pessoas passando fome por falta de terras, a Igreja deve fazer pressões junto aos latifundiários e chamar a atenção dos poderes públicos. Mas nunca pregar a violência, que é que acontece quando se estimula a invasão de uma propriedade.¿

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