Título: Lobato previu disputa entre mulher e negro nos EUA
Autor: Ubiratan
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2008, Internacional, p. A14

Datada de 1926, ficção do escritor brasileiro retrata eleição americana de 2228, em que candidatos lembram Hillary e Obama

Ubiratan Brasil

Uma eleição americana, disputada por um candidato negro e uma mulher. O que hoje já se tornou realidade era, em 1926, conteúdo de ficção científica. Pois foi com esse gênero que Monteiro Lobato definiu sua obra O Choque, que depois receberia o título de O Presidente Negro - uma nova edição sai no mês que vem, pela Editora Globo.

Ambientado em 2228, o romance mostra como os EUA, então habitados por 100 milhões de negros e 200 milhões de brancos, estão prestes a enfrentar uma questão racial. Em meio a esse turbilhão, um representante dos negros, Jim Roy, lança-se candidato à Casa Branca, disputando a eleição com uma feminista branca e o presidente Kerlog, que tentava a reeleição. A divisão da sociedade branca em partido masculino e feminino possibilita a eleição do candidato negro.

Encarado como uma ¿brincadeira¿ (o que até dificultou sua publicação nos EUA, para desgosto do escritor), o romance permite que Lobato trate de estereótipos e fantasias do inconsciente coletivo, discuta temas como a luta entre os sexos, conflitos raciais e injustiça social, ao mesmo tempo em que reavalia os conceitos de liberdade e dominação.

¿Além das incursões `futurológicas¿, nessa obra Lobato realiza uma profunda reflexão sobre assuntos que sempre preocuparam a humanidade¿, observa o pesquisador Vladimir Sacchetta que, ao lado de Marcia Camargos e Carmen Lucia de Azevedo, escreveu a mais completa biografia do escritor, Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia (Senac). Sobre a obra, que foi inicialmente publicada em capítulos no jornal A Manhã, Sacchetta conversou com o Estado.

Como Lobato teve essa idéia se, na época, o Brasil ainda vivia sob os ecos do escravismo e a hipótese de ter um presidente negro era impensável?

Lobato já nutria uma tremenda admiração pelos EUA em 1926, quando escreveu O Choque, título original do livro. No ano seguinte, mais precisamente em março de 1927, ele se mudaria para Nova York, onde assumiu o posto de adido comercial no consulado brasileiro. Admirava a Eficiência - com ¿E¿ maiúsculo - e, especialmente Henry Ford, que tinha como paradigma. Através do ¿porviroscópio¿ do Prof. Benson, Lobato constrói seu enredo que se passa em 2228, focado na eleição do 88.º presidente americano, disputada por um candidato negro, Jim Roy. É mais uma provocação lobatiana, fruto de sua tremenda imaginação, que, para ele, se transformaria num best seller no mercado americano.

Seria sua admiração pelos Estados Unidos o motivo para imaginar uma igualdade de raças? Ele tinha consciência do brutal confronto segregacionista americano?

Mais do que uma igualdade imaginada, era uma denúncia do segregacionismo. Como o enredo aponta, aliás, com a reação branca ao crescimento da candidatura do Jim Roy.

O que Lobato viu como uma virtual guerra racial tem-se resolvido pelo liberalismo?

No Brasil nunca tivemos algo parecido com o segregacionismo americano. A abolição tardia de 1888 jogou nas ruas milhares de negros livres e pobres. Lá a questão se resolveu por meio dos movimentos por igualdade e direitos civis somente nos anos 1960.

O livro `O Presidente Negro¿ e, especialmente, o papel subalterno de Tia Nastácia nos livros do `Sítio do Pica-Pau Amarelo¿ costumam ser lembrados como exemplos de racismo em Lobato. O que o sr. pensa disso?

Lobato foi um escritor cercado de preconceitos por todos os lados. Foi - e ainda é assim - no que diz respeito à sua relação com o modernismo. Um suposto racismo do escritor ficou fixado no imaginário de gerações de leitores, fruto dos ataques conservadores contra ele. Não vejo um papel subalterno em Tia Nastácia. Ao contrário, ela é depositária da cultura popular, tão cara a Lobato. Vale lembrar que ela criou Emília, seu personagem maior, costurada com retalhos de uma saia velha. E se a boneca faz malcriações e a chama de negra beiçuda, o fazia num tempo em que isso não era ¿politicamente incorreto¿. Não podemos esquecer do conto Negrinha, em que Lobato aflora como um crítico social vigoroso e expõe a crueldade e a violência da sociedade branca e de uma Igreja conivente. De um lado, temos uma dama virtuosa, esteio da religião e da moral, ¿com lugar certo na Igreja e camarote de luxo no céu¿. De outro, a órfã ¿magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados¿, criada aos pontapés como cachorro sem dono. Negrinha sofre o abuso perverso de ¿coques¿ na cabeça com os nós dos dedos, puxões de orelha, surras e a vara de marmelo flexível, cortante, para ¿doer fininho¿. Essa é uma pequena amostra que põe por terra a idéia do racismo em Monteiro Lobato.

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