Título: França investiga fraudes científicas
Autor: Netto, Andrei
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2008, Vida, p. A23
Plágio, manipulação e falsificação de dados ameaçam credibilidade da Ciência e têm sido descobertos ao acaso
Andrei Netto
Um tabu científico, o da própria lisura da ciência, começou a ser investigado na última semana por especialistas na França. A pedido do Ministério do Ensino Superior e da Pesquisa do governo de Nicolas Sarkozy, uma comissão liderada por Jean-Pierre Alix, executivo do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e encarregado de relações Ciência-Sociedade da instituição, investigará fraudes cometidas por pesquisadores.
O objetivo é conter um fenômeno crescente como o próprio orçamento dos estabelecimentos de ensino dos países desenvolvidos: o desvio ético. O consenso é que o plágio, a manipulação e a falsificação de dados e estatísticas podem estar contagiando grande parte das pesquisas publicadas em todo o mundo. A iniciativa da França não é inédita e não revela um número especial de fraudes no país, mas atrai mais atenção.
A Missão sobre Integridade Científica, da qual Alix foi incumbido, põe o país na vanguarda das nações preocupadas com o rumo da pesquisa científica, onde já estão Alemanha, Reino Unido, Dinamarca, Estados Unidos e Japão. O tamanho do buraco representado pelas fraudes é totalmente desconhecido.
Pesquisas realizadas com softwares especializados na comparação do conteúdo de textos, usando como parâmetro a biblioteca virtual de saúde Medline indicaram que, de 7 milhões de artigos comparados, 70 mil (ou 1%) apresentavam alto grau de semelhança. Entretanto, há dois anos uma pesquisa realizada pela revista especializada Nature com 8 mil cientistas, a partir de um questionário anônimo, apontou que 33% tinham se valido de práticas reprováveis nos três anos anteriores à enquete. Entre as respostas estavam a impressionante soma de 15,5% de cientistas que manipularam dados de acordo com interesses de seus patrocinadores.
Falhas como omissão de resultados contraditórios foram indicados por 6% dos pesquisadores, enquanto a falsificação de dados e o roubo de idéias envolviam, respectivamente, 0,3% e 1,4% da comunidade estudada.
Em uma das mais recentes e marcantes, desmascarada em 2004, o biólogo sul-coreano Hwang Woo-suk chegou a anunciar a primeira clonagem humana - logo após desmentida, porque se valia de estatísticas e dados maquiados. Seu erro foi crer na impunidade. Ao contrário da imensa maioria das fraudes praticadas, os casos célebres acabam desvendados pela ação de pesquisadores.
¿O governo francês não é o único interessado em criar um selo de boas práticas científicas¿, disse Alix ao Estado. ¿Descobrimos que não havia um sistema formal de apuração e que era preciso criar mecanismos de proteção da qualidade da pesquisa.¿
Na França, o Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa em Saúde (Inserm) e o Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) já têm núcleos de controle de fraudes. O primeiro passo do relatório, diz Alix, é inventariar os erros para, então, encontrar os caminhos para coibi-los. ¿Há uma zona cinzenta que concentra os resultados de pesquisas parciais, incompletas e, portanto, falsas, que precisa ser esclarecida.¿
O que se sabe até o momento é que áreas como a Química, a Física e parte da Biologia estão mais sujeitas, enquanto a Matemática parece imune. É preciso apurar ainda o peso dos plágios e o tamanho da contaminação nas Ciências Humanas. ¿De toda forma, é um problema que existe, é crescente e prejudica a imagem pública da pesquisa científica¿, conclui Alix.
PRESSÕES
A preocupação foi despertada pela pressão internacional. Em 2007, dois grandes congressos sobre o tema forma realizados no Japão e em Portugal.
Uma equipe do Fórum Mundial da Ciência da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também estudou a fundo as causas e implicações das fraudes científicas. O diagnóstico foi assustador. Segundo os autores do relatório, Frédéric Sgard e Stefan Michalowski, a pressão severa e a competição por resultados e por financiamento, o temor por seus cargos e até a falta de preparo para o tema estão entre as razões que levam os pesquisadores a fraudar trabalhos. Somam-se elementos psicológicos, como o estresse da carreira, motivações econômicas, como o interesse dos grupos financiadores das pesquisas - na indústria farmacêutica, por exemplo -, organizacionais, como a falta de pessoal, e finalmente éticos.
Enquanto Alix inicia a elaboração de seu dossiê, Sgard e Michalowski têm indicações de caminhos a seguir. O primeiro deles é a criação de sistemas nacionais formais para gerenciamento de acusações de fraudes, seja uma instituição - como os Danish Committees on Scientific Dishonesty, na Dinamarca -, seja um departamento especializado na análise e julgamento de fraudes nas universidades e nos órgãos financiadores de pesquisa.
Eles seriam baseados em códigos legais ou manuais de conduta, que orientariam julgamentos justos, com amplo direito de defesa, mas também com mecanismos de punição - que poderiam chegar à perda do título acadêmico.
¿O problema é que a denúncia das fraudes científicas ainda é feita caso a caso e sem uma política de tratamento igualitário para os suspeitos¿, explica Sgard. Para o especialista, um sistema misto, que envolva comissões de estudo de irregularidades dentro das universidades, e os órgãos financiadores - no caso do Brasil, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) -, são o caminho mais plausível para aumentar a fiscalização sobre a produção dos cientistas.
¿Hoje as fraudes são descobertas de forma fortuita¿, admite Sgard.
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