Título: Separação é 'salto no escuro' da Europa
Autor: Tisdall, Simon
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/02/2008, Internacional, p. A20

Quando, em 1990, Saddam Hussein anexou à força a ¿19ª província do Iraque¿ - parte da antiga província otomana de Basra, que, sob condução britânica, tinha se desenvolvido no Kuwait -, o mundo acusou-o de violação. Os países ocidentais ruidosamente insistiram que a integridade soberana do território e das fronteiras do emirado estavam garantidas pela Carta das Nações Unidas.

Encorajado por Margaret Thatcher, o então presidente dos EUA, George Bush pai, traçou sua famosa ¿linha na areia¿, dando início à primeira Guerra do Golfo. As conseqüências estão sendo sentidas ainda hoje no Iraque.

Pouco menos de 18 anos depois, os mesmos autonomeados guardiães da ordem internacional estão para mudar completamente seus próprios argumentos, para apoiarem a separação de Kosovo da Sérvia. A menos que alguma coisa imprevista transpire nas próximas horas, EUA, Grã-Bretanha e grande parte da União Européia usarão seu peso coletivo para escorar o desmembramento de mais um pequeno Estado soberano.

Os paralelos podem não ser exatos. Mas a declaração unilateral de independência de Kosovo, esperada para amanhã, com certeza será um momento de grande perigo para a Europa. Porque os Estados da UE não são espectadores passivos. Algumas horas após a declaração de independência, os ministros das relações exteriores reunidos em Bruxelas ordenarão o envio para Kosovo de até 2.200 policiais, juízes e administradores. As tropas européias já constituem o maior contingente das forças de manutenção da paz naquela região. Quando forças da ONU se retirarem, Kosovo se tornará, efetivamente, um protetorado da União Européia sob uma supervisão possivelmente indefinida, dispendiosa e altamente desafiadora. Não está claro se a União Européia está à altura dessa tarefa.

Kosovo é o ¿grande salto no escuro¿ da Europa. É a expressão extrema do intervencionismo pregado por Blair. E repetindo mais uma vez Thomas Hobbes, um entusiasmado estudioso do caos, os céticos sugerem que a existência independente de Kosovo - uma região de poucos habitantes e menos recursos ainda, com divisões religiosas e étnicas intransponíveis, e poucos meios visíveis para se sustentar - será ¿solitária, pobre, horrível, brutal e breve¿.

Olli Rehn, comissário da UE para assuntos ligados à ampliação, ilustra a opinião de que a separação de Kosovo não só é desejável como inevitável. ¿As pessoas nos Bálcãs se defrontam hoje com uma dura escolha: sua região pode ou resolver finalmente seus problemas pendentes ou retornar à instabilidade e aos extremos do nacionalismo¿, disse Rehn, no mês passado. Mas políticos sérvios, apoiados pela Rússia, alertam que o desejo da Europa de acalmar os fantasmas dos anos 90 deixou-a cega aos perigos imediatos e de longo a prazo de uma solução imposta. O premiê sérvio, Vojislav Kostunica, promete rejeitar a independência como ¿uma ação ilegal de terroristas¿.

Localmente, nos arredores de Mitrovica, ao norte de Kosovo, dominada por sérvios, a declaração unilateral de independência provavelmente será recebida, ou precedida, com a criação de uma assembléia local de rejeição, uma campanha de desobediência civil e provavelmente uma resistência violenta. A forte probabilidade é de que, um dia depois do seu nascimento, o norte de Kosovo será dividido de fato. É por essa razão que Kostunica está insistindo para todos os sérvios permanecerem e defenderem o seu espaço.

Tudo isso é passível de solução nos próximos meses. Mas a longo prazo, o impacto da secessão de Kosovo sobre Estados divididos internamente, como Geórgia, Bósnia e Chipre, será incalculável. Como também, as conseqüências de se ter evitado discutir essa independência no âmbito das Nações Unidas, onde a Rússia impediria o reconhecimento de Kosovo, e a extensão dos desafios econômicos e de segurança envolvidos com os quais a UE vai se defrontar.

Essa é a assustadora perspectiva que o vice-premiê russo, Serguei Ivanov, comparou com ¿a abertura da caixa de Pandora¿. E é o que o ministro do Trabalho sérvio, Rasim Ljajic, chamou, sinistramente, de ¿prelúdio do caos¿.

*Simon Tisdall é colunista do jornal `The Guardian¿

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