Título: A cara-metade do Brasil
Autor: Goldfajn, Ilan
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2008, Espaço Aberto, p. A2

Não foi amor à primeira vista. Ele, rapaz de classe média. Ela, pobre de família numerosa. Ele era a esperança do bairro. Desde a infância diziam que tinha um futuro promissor. Mas foi ela que surpreendeu. Vendendo muito para os ricos, foi economizando e investindo tudo que podia, crescendo de forma acelerada e ganhando a admiração e o respeito do bairro. Ele se tem beneficiado do sucesso da parceira, crescendo junto com ela. Mesmo agora que os ricos do bairro estão numa fase difícil (perderam muito especulando em imóveis), normalmente, um período de vacas magras, ela continua produzindo e ele, sorrindo. Foram feitos um para o outro. A China virou a cara-metade do Brasil.

O crescimento acelerado da China nos últimos anos (11,2%, em 2007, e quase 10%, em média, nos últimos cinco anos) tem contribuído sobremaneira para a atual fase positiva da economia brasileira. A China importa os bens que o Brasil exporta e não concorre de forma significativa com as nossas exportações pelo mundo (pelo menos relativamente a outros países, como o México, por exemplo). O volume de exportações brasileiras de soja e minério de ferro, por exemplo, cresceu 27% e 82%, desde 2002.

Mas não foi só isso. A crescente importância da China no comércio mundial está encarecendo os bens que eles importam (dada a forte demanda). Bingo para o Brasil! O preço dos bens que o Brasil exporta crescentemente para a China também subiu significativamente desde 2002 (soja, 75%, e minério de ferro, 187%). O preço das importações em dólares não subiu tanto no mesmo período. Tem sido um verdadeiro choque positivo dos termos de troca (isto é, preço das exportações sobre preços das importações).

Choques positivos nos termos de troca permitem quase 'pequenos milagres', pelo menos no curto prazo. O aumento nas exportações concilia apreciação cambial e melhora no saldo comercial, acumulação de reservas e crescimento forte nas importações. E, o que mais importa, crescimento acelerado e controle da inflação. Normalmente isso ocorreria apenas com elevados ganhos de produtividade (que não tendem a ocorrer repentinamente, mas ao longo do tempo, como parece ser o caso agora no Brasil).

Em geral, a melhora no saldo comercial (por causa do choque positivo nos termos de troca) leva a uma apreciação cambial que ajuda o controle da inflação e permite a acumulação de reservas e pagamento da dívida externa que, por sua vez, reduzem o risco Brasil (diminuindo o custo do financiamento das empresas brasileiras no exterior). Com inflação menor e risco reduzido, os juros no Brasil podem cair, estimulando a economia.

O reconhecimento da importância da China para a melhora econômica do Brasil não ignora a contribuição de outros fatores também relevantes. Está claro que a adoção de políticas macroeconômicas sensatas nos últimos anos (controle da inflação, câmbio flutuante e superávit primário) e de reformas microeconômicas contribui decisivamente para a melhora na situação econômica do Brasil.

Mas há também que reconhecer que o que está ocorrendo hoje no mundo é inédito. 'Nunca antes', nesse mundo cada vez mais globalizado, o preço das commodities (minerais, agrícolas, petróleo) bateram recorde de alta no exato momento em que a maior economia do mundo (EUA) está entrando em plena recessão. E, 'nunca antes', as economias em desenvolvimento continuaram crescendo de forma acelerada, durante uma crise financeira grave e uma desaceleração econômica que se alastra no mundo desenvolvido. No passado, ocorria o exato inverso: as economias em desenvolvimento eram impactadas mais do que proporcionalmente pela crise mundial (lembram da frase 'quando os EUA têm um resfriado, os emergentes pegam pneumonia?'). Uma parte da mudança era previsível. Com a melhora nas políticas macroeconômicas e a conseqüente redução da vulnerabilidade dessas economias, já não se esperava um impacto desproporcional. Mas, sim, se esperava (se espera?) algum impacto. É uma surpresa grande que não haja ocorrido nenhum efeito até o momento, a despeito da globalização nos últimos anos. Ao contrário, as economias emergentes estão caminhando em direção oposta aos EUA, crescendo ainda mais rápido. No linguajar econômico recente, estamos vivenciando um fenômeno novo, o descolamento ('decoupling') das economias em desenvolvimento da economia americana.

A conseqüência desse fenômeno atual é relevante. Caso se confirme o descolamento (ao longo dos próximos 18 meses), estará se cristalizando a idéia de que os países emergentes estão surgindo como um bloco relevante e mais independente do resto da economia mundial. Essa nova independência pode significar uma futura realocação de recursos em direção às economias emergentes, além do que já ocorre hoje. Afinal, essas economias estariam agora oferecendo uma oportunidade de diversificação dos investimentos.

O problema é que nada garante que, de fato, venha a se confirmar esse cenário inédito. Talvez o mais provável ainda seja esperar que, após uma defasagem temporal, a recessão nos EUA (e a desaceleração na Europa e no Japão) acabe impactando as economias em desenvolvimento. Ou seja, ao invés do descolamento, após um breve período teríamos o reacoplamento ('recoupling') dos países em desenvolvimento com o resto do mundo.

Em suma, o Brasil encontrou sua cara-metade no mundo econômico. Isso o tem beneficiado nos últimos anos e, em particular, agora que predomina a percepção do descolamento da China em relação ao que ocorre nos EUA. Mas será que o cenário atual irá se modificar a ponto de serem chamados para 'discutir a relação'?

Ilan Goldfajn, sócio da Ciano Investimentos, diretor do Iepe da Casa das Garças, é professor da PUC-Rio. E-mail: igoldfajn@cianoinvest.com.br