Título: Fidel e o tédio
Autor: Ghiraldelli Jr., Paulo
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/02/2008, Espaço Aberto, p. A2

A notícia da aposentadoria de Fidel era esperada. Não houve surpresas. Há quem brinque: agora que ele não tem mais nada para fazer, pode escrever seus discursos, em vez de pronunciá-los - isso irá aumentar a produtividade socialista, pois os cubanos poderão reservar ao trabalho, sem aborrecimentos, muito mais horas. De fato, os discursos de Fidel eram incomparavelmente longos. E na Ilha, quando algum visitante pergunta a um amigo local (bem amigo) se é verdade que há tortura ali, alguns dizem: você mesmo vai presenciar uma cena de tortura hoje, pois está marcado para à tarde um discurso do presidente Fidel Castro. Um discurso não costumeiramente longo de Fidel pode começar às duas da tarde e ir noite adentro.

Cuba sem Fidel continuará pobre. As pessoas ali continuarão, talvez por um tempo ainda, a ser tratadas sem nenhum respeito pelo governo, como o que vimos na ¿chamada de volta para a casa¿, na época do Pan. Do outro lado, no Continente, os Estados Unidos continuarão o embargo econômico - que é mais um símbolo do que algo que realmente tenha feito Cuba chegar à situação de pobreza em que vive. Cuba, antes de ser uma ¿experiência de socialismo¿, é a garantia de emprego para muitos agentes da CIA da velha guarda, gente especializada no ¿combate ao comunismo¿. Esse pessoal torce para que Chávez permaneça no poder e ocupe o lugar de Fidel na América Latina. Pois esses agentes são burocratas que não têm mais idade para aprender árabe e deixar de lado o comunismo. Vários deles não poderiam se reciclar para a tarefa de combate ao ¿novo inimigo dos Estados Unidos¿, o ¿terrorismo oriental¿.

Como qualquer outra instância burocrática, a CIA faz de tudo para parecer útil aos olhos do contribuinte americano, e isso tem levado a agência a um clima tenso internamente. Os novos agentes estão já há dez anos envolvidos exclusivamente com o mundo árabe, sem relacioná-lo ao comunismo. Mas ainda há uma parcela de agentes, hoje em cargos executivos dentro da agência, que ou aprendeu russo ou se dedica única e exclusivamente à ¿América Latina, como foco do comunismo¿. Esse pessoal, e suas famílias, estão mais preocupados com a aposentadoria de Fidel do que qualquer um de nós, fora ou dentro de Cuba.

Mas, se Cuba é pobre pelo fracasso da economia socialista, e se todos nós sabemos que não há liberdade nem política nem de expressão na Ilha, qual a razão de ainda termos intelectuais e políticos, em nosso país, e até mesmo no governo, que falam de Cuba como se estivessem falando do paraíso? Simples desinformação? Miopia ideológica misturada a algum tipo de esquizofrenia? Ou apenas oportunismo, para manter bases eleitorais que ainda possam existir em grupos estudantis?

Todas essas perguntas podem ser respondidas positivamente, mas, é claro, só a direita gostaria de vê-las todas, de fato, respondidas positivamente. Não é meu caso. Conheço vários intelectuais sérios - e alguns até inteligentes - que consideram Cuba um farol. É que esses intelectuais nunca olharam para Cuba para enxergar Cuba, eles sempre olharam para Cuba para comparar Cuba com o que chamam de ¿o resto¿. E ¿o resto¿, para eles, é um mundo em que não importa a democracia, e sim o capitalismo. Olham para o capitalismo e enxergam nele, talvez justamente, o demônio. Mas não olham para o mundo fora de Cuba para ver que temos mais coisas além de capitalismo; temos também a democracia. Essas pessoas ainda não perceberam que o capitalismo e a democracia não são parentes. E eis a China aí para não nos deixar enganar: ditadura de partido único com introdução de princípios capitalistas. A democracia é o regime que pode domesticar o capitalismo, torná-lo menos agressivo e, ao mesmo tempo, manter sua capacidade - inegável - de criar tecnologia e distribuí-la melhor que o socialismo.

Todavia, a democracia não empolga. Qual a razão de ela não empolgar? É que a democracia é um regime necessariamente de tédio. Ela não foi criada para excitar as pessoas, ela foi criada para aquelas pessoas que querem tocar a vida individual. A democracia moderna, nesse sentido, é um produto tipicamente burguês. Ela é o regime político que põe as coisas na rotina, que faz com que um governante seja substituído por outro, que leva as opiniões do senso comum em consideração e que, enfim, leva as pessoas a buscarem a felicidade no lar, a quatro paredes, talvez só na cama. Espíritos revolucionários, e não raro totalitários, odeiam esse tédio. E então não conseguem perceber que esse tédio é altamente... emocionante para aqueles que possuem imaginação. Pois é na rotina que podemos fazer as melhores coisas. Quando todo dia fazemos um pouco de coisas boas, fazemos muito. É assim que se constrói um país livre e bom de se viver: fazendo das melhores práticas, rotinas. Para quem tem imaginação, isso é altamente empolgante.

O povo cubano foi castrado na sua imaginação. O mesmo aconteceu com o povo que, um dia, foi chamado de ¿soviético¿. Caso a aposentadoria de Fidel venha a significar o começo de um caminho para a democracia, Cuba irá dar passos duros para saber apreciar aquilo que os povos do Leste Europeu têm sofrido para conseguir apreciar: emoção não vem da política, vem de tudo, menos da política. Não há nada emocionante em passar uma vida como ¿soldado da revolução¿. A política democrática é para administrar o rotineiro, não para dar emoção. É nisso que ela é útil; é nisso que ela é bela. Torço para que o povo cubano possa, logo, ficar no tédio. O tédio da democracia não é o tédio de longos discursos. Longos discursos não levam ao tédio, eles levam ao marasmo e, não raro, apenas encobre a tortura - real.

Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo Site: www.ghiraldelli.pro.br

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