Título: EUA ajudaram a consolidar legado de Fidel
Autor: Scheer, Robert
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/02/2008, Internacional, p. A15

A renúncia de Fidel Castro é mais promissora para a consolidação de seu legado do que a maioria dos septuagenários linhas-duras cubanos em Miami e seus aliados do governo Bush gostariam de pensar. Afinal, Mao Tsé-tung ainda é reverenciado na China comunista, potência capitalista que mais cresce no mundo, e o ex- agente da KGB Vladimir Putin é, ao menos por enquanto, um líder russo eleito e muito popular.

Os que anseiam por uma ¿flotilha da liberdade¿ de exilados cubanos retornando para reconstruir Havana à imagem de 1959, ameaçando o futuro de Las Vegas com a prostituição legalizada e o jogo, provavelmente ficarão profundamente desapontados.

As chances são de que os sucessores de Fidel, a começar por seu irmão Raúl, finalmente tenham uma atitude mais pragmática e coloquem um fim à moribunda economia estatista. O mais provável é que haja uma reforma que conduza a ilha no sentido do modelo chinês ou - o que é mais provável - no caminho adotado pela Venezuela, que nos últimos anos atirou uma bóia de salvação à sufocada economia cubana.

Essas mudanças, porém, virão tarde demais para justificar o sofrimento do povo cubano durante meio século nas mãos de um revolucionário que testemunhou sua visão de mundo naufragar nas rochas de uma cínica política americana.

A principal responsabilidade por esse sofrimento vai para o ¿Colosso do Norte¿, que, na busca desenfreada pela exploração econômica e na paranóia da Guerra Fria, preferiu sistematicamente ditaduras latino-americanas a experimentos sérios de governo popular e estrangulou a economia cubana com um embargo que começou quando Fidel expulsou as corporações americanas da ilha, quase cinco décadas atrás.

Se Fidel tivesse tentado perseguir o caminho do socialismo democrático em vez da ditadura comunista, seu esforço, muito provavelmente, teria sido subvertido pela CIA, como foi o caso em todo o mundo. No entanto, era um tentativa digna de se fazer.

Essa foi a promessa do famoso discurso de Fidel, proferido em 1953, logo após o ataque ao Quartel Moncada. Ela foi feita por um jovem revolucionário encarcerado que sonhava com um poder popular genuíno. Hoje, ele mesmo deve ter dúvidas se a História de fato o absolverá - como previu na época - pelo preço pago em liberdade individual pela sobrevivência da revolução.

A impossibilidade de a Revolução Cubana de Fidel Castro oferecer uma alternava socialista democrática foi selada pela decisão do então presidente John F. Kennedy, esse inexplicável herói do liberalismo americano, de invadir uma ilha que não representava nenhuma ameaça aos EUA.

O governo americano havia apoiado a ditadura brutal de Fulgencio Batista, e a administração Kennedy chegou a recrutar bandidos da máfia - que tinham o controle de Havana durante o governo de Batista - para uma fracassada tentativa de assassinar Fidel.

Poucos meses depois de assumir a presidência dos EUA, Kennedy promoveu uma escalada da Guerra Fria que seu antecessor, o republicano Dwight Eisenhower, havia tentado conter. Contrariando a decisão de Eisenhower de não enviar soldados americanos ao Vietnã, Kennedy mentiu aos americanos sobre o propósito de sua decisão de enviar a Saigon consultores em ¿controle de enchente¿ e sobre a cumplicidade de Washington na morte de Ngo Dinh Diem, o títere americano que era considerado o George Washington do Vietnã - e que depois foi sumariamente assassinado durante um ataque comandado por agentes da CIA.

Enquanto Eisenhower resistiu aos apelos para derrubar Fidel em represália à nacionalização da rede de energia, das minas de níquel e das plantações de açúcar que pertenciam a americanos em Cuba, Kennedy, nos primeiros meses de seu governo, autorizou a fracassada invasão da Baía dos Porcos, em 1961.

Sim, as medidas mais estúpidas da Guerra Fria foram autorizadas por um presidente democrata idolatrado e foram aceleradas por seu sucessor, outro grande democrata, Lyndon Johnson. Ambos, como comprovam registros de memórias, pesquisas acadêmicas e, no caso de Johnson, fitas gravadas na Casa Branca, foram motivados pelo medo de parecer mais fracos do que seus rivais republicanos em questões de segurança nacional. Esse paradoxo nos oferece uma história bastante educativa para podermos refletir sobre a corrida presidencial atual.

É muito fácil se autoproclamar um defensor universal dos direitos humanos quando se isenta o próprio país de julgamento. Quando foi que os EUA se preocuparam com os direitos humanos em Cuba - ou em qualquer outro lugar da América Latina antes de Fidel?

Isso sem contar o fato de os EUA terem feito piada da causa democrática quando seu presidente, duas vezes eleito pelo povo, criou um dos mais pavorosos símbolos de tortura no território americano de Guantánamo, em Cuba.

* Robert Scheer é jornalista e professor da University of Southern California. Ele escreveu este artigo para o site truthdig.com

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