Título: Mulheres divididas
Autor: Cardoso, Eliana
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/03/2008, Espaço Aberto, p. A2

No vôo de São Paulo a Washington, reli Um Teto Todo Seu. O ensaio é uma delícia, cheio de verve e fina ironia. Mas me pergunto se o argumento de Virgínia Woolf não é datado. Para ilustrar a desigualdade entre homens e mulheres, ela inventa uma irmã para Shakespeare, a quem chama de Judith e a quem atribui um talento ainda maior do que o do dramaturgo. Mas, ao contrário do irmão, Judith não foi à escola, não leu Ovídio nem Virgílio. Se o pai a pegava a folhear um livro, dizia-lhe que o pusesse de lado e fosse remendar meias e cuidar do guisado.

Ora, um gênio como o de Shakespeare não nasce entre pessoas sem instrução, diz Virgínia Woolf. Com certeza. Mas o que diria ela ao ler os ¿Indicadores do Desenvolvimento¿ publicados pelo Banco Mundial? Na escola secundária, o número de meninas é superior ao de meninos em 84 países (entre 171 países). Na universidade, as mulheres são mais numerosas do que os homens em 83 países (entre os 141 para os quais a informação existe).

Os números parecem indicar que, em 2008, a desigualdade entre homens e mulheres já não está no acesso à educação, como no tempo de Shakespeare. Pelo menos no caso das filhas das classes endinheiradas. As latinas que apóiam Hillary Clinton, entretanto, continuam a se queixar de sexismo.

Com razão. Se as restrições que existiam no tempo de Shakespeare já não valem para as mulheres ricas, ainda parecem insuperáveis para as que trabalham em atividades urbanas informais de baixa produtividade. E com mais razão ainda no Brasil, onde a participação dos domicílios chefiados por mulheres entre as famílias indigentes quase dobrou entre 1992 e 2006, passando de 22% para 42%.

Chegando em Washington, juntei jornais e revistas para me informar sobre a corrida presidencial. Aqui também existe a cisão das mulheres - tão clara no Brasil - entre as excluídas e as que têm acesso a privilégios antes considerados masculinos. E, talvez por isso mesmo, elas estão divididas no seu apoio a Hillary, embora esta seja a primeira vez que uma candidata mulher tenha chance de ganhar a eleição presidencial nos EUA.

Para a campanha da candidata democrata, o resultado é devastador. Tradicionalmente, seis entre dez eleitores nas primárias são mulheres. Até fevereiro, Hillary tinha entre elas uma vantagem de 7 pontos porcentuais sobre Obama (e 24 pontos porcentuais de vantagem entre as eleitoras brancas). Mas Obama está virando esse quadro a seu favor.

As mulheres negras de todos os níveis de renda se aliaram a ele, enquanto as brancas se dividiram. Mães, líderes sindicais e feministas estão correndo para o lado dele. As histéricas também. Jim Vicevich, âncora de um programa de rádio em Connecticut, contou cinco desmaios de mulheres durante os comícios de Obama.

Essas notícias confirmam a incapacidade das mulheres de pensar de forma estratégica para a tomada do poder? As mulheres educadas e de classe alta podem se dar ao luxo de aderir a Obama, por que não precisam dos programas de saúde e assistência à mulher que Hillary prometeu a suas irmãs menos protegidas?

Ou é Obama o melhor candidato? Ele conseguiu criar uma aliança entre os afro-americanos e a elite educada. E mudou a composição do eleitorado ao atrair centenas de milhares de eleitores com menos de 30 anos.

É possível também que a questão étnica nos EUA seja mais importante do que a feminina. No final de 2007, um relatório do centro de pesquisa PEW sobre a desigualdade entre negros e brancos concluiu que os afro-americanos (como as mulheres!) estão rachados entre os valores da classe média negra e os dos grupos negros mais pobres. Quatro entre dez negros dizem que, por causa da diversidade no interior de suas comunidades, os negros já não podem considerar-se como uma única raça.

Na segunda metade do século 20, o movimento de direitos civis e o feminismo varreram os EUA e transformaram a nação. Apesar disso, nas décadas de maior sucesso desses movimentos, o país tornou-se mais desigual. Entre 1973 e 2004, a renda real dos 20% mais pobres aumentou 20%, enquanto a dos 5% mais ricos aumentou 73%.

Nos últimos 30 anos, a sociedade americana assistiu tanto ao aumento da desigualdade entre brancos quanto à persistência de desigualdades entre negros e brancos e entre homens e mulheres. Ao mesmo tempo, muitos indivíduos negros e mulheres gozaram de grande mobilidade.

Hoje as diferenças já não resultam de formas públicas e privadas de opressão e discriminação. A desigualdade (tanto entre negros e brancos quanto entre homens e mulheres) resulta de processos iniciados na infância - como Virgínia Woolf percebeu tão bem - e que perpetuam a pobreza dos negros e das mulheres que nascem nos grupos mais vulneráveis.

Obama está bem equipado para enfrentar esse desafio. Não apenas porque pode servir de modelo para o homem negro, mas porque se vê desempenhando exatamente esse papel: ¿Posso dizer verdades que outros candidatos terão mais dificuldade em expressar¿, disse ele. ¿Posso falar da responsabilidade dos pais negros. Posso mostrar a eles que precisam se engajar no melhor desempenho educacional de suas crianças.¿

Antes de me despedir de Washington, fui ao teatro ver Major Bárbara, a obra-prima de Bernard Shaw. Como na maioria das peças do dramaturgo, uma heroína jovem descobre que suas crenças tinham sido construídas sobre areia. O entusiasmo da moça (que renunciara ao conforto para se unir ao Exército de Salvação) desmorona junto com seu mundo e sua fé, sob a força bruta do dinheiro do pai, dono de uma indústria de armamentos. O pai declara que a pobreza é um crime. Mas a doutrina de que a pobreza degrada pode ser usada mais para manter os pobres afastados do poder do que para fazê-los ricos. A divisão entre mulheres e entre negros pode ter o mesmo efeito.

Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV. Site: www.elianacardoso.com

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