Título: Imbroglio sul-americano
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/03/2008, Economia, p. B2
O ataque colombiano à base das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) no Equador explicitou de forma clara os perigos que cercam a progressiva desestabilização do equilíbrio político na América do Sul. A ação colombiana deve ser deplorada, pois envolveu a violação da soberania equatoriana. Mas a reação de governos que pretendam ter posição eqüidistante e atuar como mediadores deve ir além. Deve ser igualmente deplorada a leniência equatoriana quanto ao uso de seu território como santuário por forças guerrilheiras que desafiam o governo legítimo da Colômbia. Há evidência de que a complacência equatoriana pode ser claramente detectada nas cidades da fronteira com a Colômbia: desde o perfil de compras realizadas no comércio local até a disponibilidade de centros cirúrgicos sofisticados em hospitais que, em princípio, deveriam simplesmente atender civis. A censura deveria também mirar no recorrente protagonismo venezuelano. A concentração de tropas venezuelanas na fronteira com a Colômbia configura reação desproporcional e despropositada, além de ser jactância que não encontra respaldo no equilíbrio militar na região.
Dominando todas as controvérsias está a definição de posições diametralmente opostas quanto à natureza das Farc. Há os que estão dispostos a relevar as articulações profundas entre um movimento de oposição militar ao governo legal e representativo da Colômbia, associado ao narcotráfico e contumaz na prática de ações criminosas. E há os que não estão dispostos a aceitar que os fins justificam tais meios. Deve ser registrado também que a complacência com as Farc tem ramificações internacionais importantes. A reação do ministro das Relações Exteriores da França à morte do segundo homem na hierarquia das Farc foi espantosa: lamentou a sua morte por se tratar do interlocutor do governo francês e acusou o governo colombiano de sabotar o resgate da senadora Ingrid Betancourt. Nicolas Sarkozy, talvez o político europeu mais chegado ao protagonismo midiático, diz-se disposto a participar diretamente das operações de resgate na selva... Tudo cercado por um tom de que là bas vale tudo. Esperemos que o Brasil fique à margem dessas fitzcarraldices. É sempre bom lembrar que, em julho de 2003, houve um incidente deplorável em que o Quai d'Orsay, metendo os pés pelas mãos, enviou um avião militar francês, que pousou em Manaus, com tripulação que incluía equipe 'médica', que seria de fato um comando de serviços especiais com a missão de libertar a senadora Betancourt.
Há quem se preocupe com o papel dos EUA, dado o desastroso retrospecto de sua diplomacia e da intervenção militar no Iraque. É importante sublinhar as diferenças entre o exercício da influência dos EUA no Oriente Médio e na América Latina. A política norte-americana na Colômbia está, pelo menos por enquanto, alinhada à da defesa de um governo democrático em relação a oponentes comprometidos com práticas terroristas, acoitados e estumados por governos de nações vizinhas. É claro que deverá haver vigilância quanto à delimitação do papel desempenhado pelos EUA. Poder-se-ia também perguntar: quais seriam as opções do governo colombiano na seleção de aliados? É preciso perceber com clareza que quanto mais próxima a relação do Brasil com a Venezuela de Chávez, visceralmente hostil ao governo colombiano, maior o espaço aberto para a ação norte-americana na Colômbia.
Do ponto de vista do Brasil, as lições diplomáticas e militares relacionadas ao episódio são contundentes. Foram explicitados os custos de manter duas políticas externas, em vez de uma política externa una, efetivamente sintonizada com interesses nacionais e não com interesses sectários. Desde o início do governo, o Itamaraty compartilhou, sem discrepância visível, a condução da política externa com o assessor especial do presidente, Marco Aurélio Garcia, com posições marcadas por idiossincrasias bolivarianas. O alinhamento brasileiro a Chávez compromete qualquer pretensão séria a ter relevância como país mediador principal do conflito. O leitor pode fazer um teste simples: se fosse um democrata colombiano, que confiança teria no equilíbrio da ação mediadora brasileira?
Não é que o retrospecto da política externa brasileira extra-América do Sul seja notável. Longe disso. Mas brilha, quando comparado ao desastre da política sul-americana do governo Lula, a reboque de Hugo Chávez. Mesmo um governo recorrentemente avesso à apuração de responsabilidades deveria tratar de avaliar como é que se meteu nessa encrenca. Ou talvez melhor fosse a convocação ao Congresso tanto do chanceler quanto do assessor especial da Presidência para que detalhassem as suas visões do imbróglio.
O episódio também explicitou o desequilíbrio entre as presenças militares do Brasil, da Colômbia e da Venezuela na Amazônia. As Forças Armadas deveriam ser providas de meios para a efetiva defesa do território em face da ameaça de conflitos em áreas fronteiriças. É necessária presença militar redobrada na Amazônia, incluindo infantaria aerotransportada e capacidade aérea que replique os programas de rearmamento tanto da Venezuela quanto da Colômbia. E isso deverá ser feito levando em conta outros objetivos essenciais, como a defesa da plataforma continental e a presença militar convencional no sul do País. Argumento adicional de peso para a radical reavaliação do volume e da composição dos gastos públicos no País.
*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
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