Título: Só há bons ventos para naus com rumo
Autor: Sola, Lourdes
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/03/2008, Espaço Aberto, p. A2

O comunicado do Banco Central de que o País acumulou reservas mais que suficientes para cobrir sua dívida externa pode ser celebrado como um ponto de inflexão real e simbólico em uma longa trajetória de vulnerabilidade do País aos ventos externos. Tem valor estratégico e simbólico, que vai muito além de sua inegável dimensão econômica.

Que tenhamos passado da condição de país devedor à de país credor obriga a uma mudança de perspectiva e de foco, também quando se trata de analisar suas implicações políticas de longo alcance, seja para a democracia brasileira, seja para os rumos das políticas sociais. A razão é simples. Boa parte dos estudos sobre democratização no Brasil e na América Latina parte de um suposto que nos últimos anos foi se tornando se não obsoleto pelo menos datado: o de que a democracia renasceu e se consolidou em tempos difíceis, assombrada por extrema vulnerabilidade aos sucessivos choques externos. De fato, o Brasil foi um caso típico, pois ao longo dos últimos 25 anos, entre desacertos, retrocessos, moratória e tratamento humilhante aos nossos negociadores em Washington, a democracia brasileira passou por sucessivos ¿testes de estresse¿, a maioria dos quais relacionada a ¿constrições externas¿. Tratava-se de conquistar um equilíbrio difícil entre objetivos, cujo escopo, alcance e timing eram díspares: 1) administrar a ¿emergência econômica¿, afastando o espectro de uma crise de solvência; 2) implantar direitos políticos, sociais e civis, com amparo no novo texto constitucional; e 3) responder à crise de legitimação do Estado desenvolvimentista, por meio de novas formas de integração do País à nova ordem global.

Os desafios mudaram em parte porque somos beneficiários de uma mudança global no eixo de poder econômico a favor de alguns emergentes, como China e Índia, e da liquidez internacional sem precedentes até a crise dos subprimes. Mas foram as mudanças cumulativas no plano doméstico que viabilizaram o aproveitamento das novas janelas de oportunidade. As reformas que nos anos 1990 configuraram um choque de produtividade e viabilizaram saldos comerciais crescentes foram reforçadas pela correção de rumos na esteira do choque cambial de 1998, graças à adoção do câmbio flutuante e do regime de metas da inflação. Desde 2003, entre alguns retrocessos, prevaleceram a continuidade e o aperfeiçoamento das fórmulas bem-sucedidas - e não sua desconstrução - em que pese a retórica político-eleitoral do presidente Lula. Mas desconstrução houve, só que no plano das mentalidades, ou seja, em outro hemisfério mental - o dos valores emocionais associados a propostas e a palavras consideradas ¿fóbicas¿ inicialmente por setores da elite política hoje no poder: capitalismo, produtividade, governança, privatização. Foram-se os tempos em que o ¿choque de capitalismo¿, recomendado por Covas, reverberou com valor negativo em sucessivas ondas de choque entre adversários e aliados.

O novo quadro geopolítico e econômico impõe uma mudança de perspectiva e de foco para os analistas políticos, porque as questões a exigir reflexão são outras. O que acontece quando as severas restrições econômicas são retiradas ou atenuadas e a economia tem uma função potencialmente liberadora, de capacitar (em lugar de restringir) a ação política estratégica? Quais são as implicações para a estabilidade e a qualidade da democracia? Pode-se inferir que um círculo virtuoso está prestes a se iniciar também na esfera política?

Minha resposta ao otimismo implícito nessa expectativa passa pela crítica ao reducionismo econômico que, como todos os reducionismos, é simplista. Tudo o que as mudanças econômicas positivas de ordem estrutural podem produzir em uma democracia são mudanças significativas no sistema de incentivos para a ação estratégica à disposição dos políticos eleitos e das burocracias relevantes. Tal como o crescimento acelerado, tais incentivos ampliam o espaço de discricionalidade política dos que governam, sobretudo em um sistema dominado pelo Executivo. Em tempos de bonança, quando o curto-prazismo imposto pela emergência econômica fica para trás, é quando adquirem maior visibilidade os jogos de interesse, as distorções do sistema político e o peso das mentalidades dominantes na formação das políticas públicas.

Em que estamos hoje? Não é acidental que na esfera política as evidências sejam mais desencontradas e desalentadoras. Quando se trata de construção democrática, a desconstrução de mentalidades é lenta. Não há um equivalente às disciplinas impostas pelo poder de fogo dos mercados que obriguem à rapidez na correção de rumos e no processo de aprendizagem pela classe política. A leitura dos jornais evidencia a constante reiteração de um embate entre duas mentalidades, de concepções de democracia e dois princípios de ordenamento social e político. Destaco um retrocesso e um avanço, por emblemáticos. O retrocesso: a dificuldade do presidente Lula de arbitrar um conflito extemporâneo entre a Comissão de Ética pública e o ministro Lupi, obrigado pelo Código de Ética - que assinou quando empossado - a optar entre a presidência de seu partido, o PDT, e a condição de ministro. O avanço: a nova mentalidade, em construção, explícita no projeto educacional da secretária Maria Helena Guimarães (Veja, 9/2 e Folha de S.Paulo 24/2). Concebido em termos do direito do futuro cidadão de ter um Estado eficiente desde já, traz para o universo educacional um sistema de incentivos, um currículo mínimo que, sem ferir a liberdade do educador, estabelece critérios de desempenho igualitários: a partir de metas acadêmicas, sistemas de avaliação e de recompensa objetivos. ¿Capazes de distinguir e de premiar.¿

Lourdes Sola, Ph.D. em Ciência Política pela Universidade de Oxford, livre-docente e professora do Departamento de Ciência Política da USP, consultora associada da Mendonça de Barros Associados, é co-autora do livro Banco Central: Autoridade Política e Democratização - Um Equilíbrio Delicado (Rio: FGV, 2002)

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