Título: Defesa da vida - uma questão de religião
Autor: Scherer, Dom Odilo P
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/03/2008, Espaço Aberto, p. A2

A Campanha da Fraternidade (CF) propõe, neste ano, a reflexão sobre a defesa e a valorização da vida humana que, de muitas maneiras, é banalizada e ameaçada. É uma questão levantada pela Igreja, é verdade, mas isso interessa a toda a sociedade brasileira.

A Igreja Católica afirma a inviolabilidade da vida humana desde o seu início, na fecundação; e defende a dignidade intocável de cada ser humano, não importando o estado ou a condição em que ele se encontra; afirma ainda que o ser humano não deve ser considerado um ¿bem útil¿, sujeito à lógica do mercado ou ao interesse e à comodidade de terceiros; entende, enfim, que isso é válido não apenas para os seus fiéis, mas para todos. Dizer que tal argumentação é apenas religiosa pode representar um preconceito e uma forma de escamotear uma reflexão importante, para fazer prevalecer um único ponto de vista. Acaso alguém, por não ser católico ou crente em Deus, poderia ser morto, sem mais? Ou estaria ele liberado para matar outros seres humanos? Poderia ser escravizado, vilipendiado ou usado por outros, como um ¿objeto útil¿? Ou estaria liberado para fazê-lo?

A questão de fundo, de fato, é esta: alguém de nós pode ou a sociedade e o Estado podem dispor de um ser humano vivo para fazer com ele o que quiser, até mesmo suprimindo-lhe a vida? Será que alguém aceitaria que outros fizessem conosco a pior coisa que se possa imaginar, tirando nossa vida? Isso seria totalmente inaceitável! E se o Estado resolvesse autorizar a supressão da vida de seres humanos, chamaríamos esse Estado de tirano e gravemente faltoso em relação aos direitos humanos. Pois bem, o direito à vida, deve permanecer intocável; é o primeiro de todos os direitos e dele decorrem os demais. Se houver vacilação na afirmação desse princípio basilar, ficará abalado todo o Direito e se abrirão as portas ao império do arbítrio e da violência.

Os critérios do conforto-desconforto, prazer-sofrimento, custo-benefício, da utilidade e da vantagem podem ser aduzidos para decidir se um ser humano pode nascer ou deve morrer antes mesmo de ver a luz? Os mesmos critérios podem ser usados para matar ou deixar viver uma pessoa adulta, ou para decidir se uma pessoa idosa ou com problemas sérios de saúde pode continuar vivendo ou deve deixar de existir? Nas escolhas, decisões ou atividades que empreendemos, somos facilmente tentados a dar primazia aos critérios do prazer, da vantagem e da utilidade; tais critérios também podem ser legítimos, mas nunca supremos, quando estão em jogo a dignidade e a vida humanas. O filósofo Emmanuel Kant ensinava que o ser humano deve ser considerado sempre um fim em si mesmo e, jamais, um meio para alcançar outros fins. Sendo assim, ninguém pode transformar um outro ser humano em objeto ou se apropriar de sua pessoa e de sua vida por interesse, violência ou por qualquer outro motivo. Queremos mudar isso e estabelecer outros critérios, segundo os quais alguns seres humanos poderiam existir e outros deveriam ser eliminados?

Aqui tratamos, certamente, de considerações éticas que devem estar na base da formulação de leis ou de sua mudança; não se trata de proibições religiosas, mas de princípios éticos gerais, que a Igreja Católica também defende e que tornam a convivência humana digna e respeitosa. A pergunta que deveria ser feita é esta: é belo, é justo, é adequado ao agir humano, ou não, proceder de um modo ou de outro? Quando se trata do respeito à vida humana, felizmente, há uma rejeição sempre mais ampla da pena de morte, da guerra, dos assassinatos a sangue-frio e da violência explícita; estranhamente, porém, cresce a tolerância em relação à prática do aborto, da eutanásia, da eugenia. É contraditório.

A defesa da vida, acima de tudo, é uma questão de direitos humanos e interessa a todos os cidadãos, sejam eles crentes ou não crentes. Se a posição católica não é favorável à legalização do aborto, é porque nesta prática sempre está implicada a supressão voluntária de um ser humano vivo. Todas as demais questões que são apresentadas como argumentos a favor do aborto, como o sofrimento da mulher gestante, o futuro do ser humano que está sendo gerado em hora inesperada, têm sua importância e merecem a atenção conveniente do Estado, da sociedade em geral e também da Igreja; mas não podem justificar a supressão da vida de seres humanos, ainda mais, indefesos e inocentes.

E se a Igreja considera inaceitável, do ponto de vista ético, a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas, é porque a obtenção de tais células requer a destruição de embriões; e esses já são seres humanos no início do seu desenvolvimento. Não importa se estão congelados há mais tempo ou são recentes; se foram produzidos em laboratório ou se tiveram origem no útero materno. Mesmo se dessa pesquisa pudessem resultar soluções para doenças até agora incuráveis, a destruição de seres humanos, para atingir tais resultados, continuaria sendo uma prática ilícita. A vida humana não é um bem disponível e não pertence a terceiros nem ao Estado. O ser humano nunca deve ser tomado como um meio para atingir outros fins.

A Igreja não é contrária à ciência; mas ela afirma que os procedimentos científicos, enquanto atividades humanas, também devem ser orientados por critérios e normas éticas; uma delas, claramente, é o respeito à vida e à dignidade do ser humano. A prática da ciência não está acima da ética; tanto isso é verdade e reconhecido, que existe um Comitê Nacional de Ética em Pesquisa, justamente para vigiar sobre a qualidade ética dos procedimentos científicos. E não se trata de um organismo de religião, mas de Estado.

Dom Odilo P. Scherer é arcebispo de São Paulo

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