Título: A nova reforma tributária
Autor: Gonçalves, Renaldo A.
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2008, Espaço Aberto, p. A2

A atual proposta de reforma tributária do presidente Luiz Inácio se conecta com a anterior pela insistência em reformar o ICMS. A novidade é que o governo federal oferece um pouco mais do que tornar a CPMF um imposto.

Conceitualmente, a nova proposta se apóia na idéia de melhoria do ambiente de negócios, pela simplificação dos tributos e pela desoneração da folha de pagamento.

A unificação do PIS-Pasep, Cofins e Cide num novo gravame - o IVA/F - e, na esfera dos Estados, a unificação dos ICMS num IVA estadual, revelam a vontade dessa melhoria. Na mesma linha está a absorção da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) pelo Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e a extinção do salário-educação.

Trata-se do reconhecimento de que o contribuinte brasileiro convive com vários órgãos arrecadadores (governos federal, estaduais e municipais) e que estes atuam simultaneamente sobre a sua capacidade contributiva, exigindo informações fiscais escrituradas em livros diferentes, os tributos recolhidos em formulários diversos e acompanhamento de todas as modificações na legislação dos três níveis de poder. Esta complexidade de procedimentos onera os contribuintes e abre o flanco para a corrupção e a sonegação.

Se há, no entanto, uma benéfica vontade de melhoria, há também um evidente desconhecimento da história tributária do Brasil, dos limites do nosso federalismo e de algumas inconsistências técnicas da nova proposta.

No início da Primeira República a reforma tributária se limitou a permitir que os Estados taxassem a ¿exportação de mercadorias de sua própria produção¿; assim, se um bem gerado num Estado fosse enviado a outro, o tributo ficaria no Estado exportador. Esse tímido avanço federalista em relação à monarquia foi contestado pelo governo federal da época; assim, o avô do atual ICMS nasceu de uma disputa federativa.

A última grande reforma tributária, feita pelos militares, deixou como herança um perfil fiscal unitarista, ou seja, os contribuintes pagam o mesmo conjunto de impostos em qualquer região do Brasil, bem como uma forte definição de papéis federativos na arrecadação tributária.

A visão unitarista dos militares não se limitava ao ordenamento tributário, ela transbordava para vários setores da economia brasileira. Nessa reforma o governo central ficou com os tributos sobre a renda, a produção industrial e o patrimônio, enquanto os governos estaduais ficaram com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM, muito parecido com o IVA) e aos municípios foram atribuídos o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) e o Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial (IPTU).

Para não descaracterizar o status de federalismo, os militares ¿concederam¿ autonomia para alterar as alíquotas de ICM (dos subgovernos) e as do ISS (das prefeituras). Após essa reforma a carga tributária se situou em torno de 24% do PIB de 1965 até 1980.

Com a democratização, a reforma tributária da Constituição de 1988 tentou juntar o ICM com o ISS, sem êxito. O resultado foi o aparecimento do S na tributação dos Estados, surgindo o ICMS, mas se manteve o ISS municipal - e a carga tributária subiu para 30% do PIB.

Com a estabilização econômica dos anos 1990 houve necessidade de equilibrar o orçamento do Estado e para isso surgiram várias taxas e contribuições (PIS/Cofins, CSLL, CPMF, etc.), que, na prática, se transformaram em impostos. Estas novas receitas do governo federal incidem sobre os serviços e a produção industrial, gerando uma carga tributária de aproximadamente 37% do PIB.

Se a proposta do governo federal fosse unificar todas as suas contribuições, taxas, o Imposto sobre Produtos Industrializados, Imposto de Exportação, Imposto sobre Operações Financeiras, num IVA, seria um avanço gigante. Esta proposta desencadearia a necessidade de discutir os tributos estaduais e os municipais para tornar orgânica a nova estrutura de arrecadação dos recursos do Estado.

A proposta, ousada, aproveitaria o atual momento de prosperidade e estabilidade macroeconômica para fundar as novas bases produtivas do futuro, com um perfil tributário enxuto, simples e eficiente, recolocando a indústria nacional na trilha da competitividade internacional.

O reordenamento tributário, mesmo que mantivesse a atual carga, poderia progressivamente reduzi-la a um patamar compatível com a capacidade de contribuição da população brasileira. É desconcertante saber que quase 70% dos brasileiros ganham até dois salários mínimos e seu esforço tributário é maior que o dos 30% restantes.

A criação de dois IVAs desconsidera a possibilidade de dupla tributação, nas esferas federal e estadual, e a consolidação das contribuições federais colide com os tributos sobre serviços cobrados pelos municípios.

A reforma do ICMS em IVA, ignora que este é o único gravame de que os Estados dispõem para promover, autonomamente, o desenvolvimento regional e é, também, o principal instrumento para financiar os projetos políticos dos governadores.

Se com a centralização tributária aumentasse a coordenação dos gastos em bens públicos das três esferas de poder, garantindo melhor qualidade de vida - isto é, escolas públicas com todos os ambientes (bibliotecas, laboratórios, etc.), professores capacitados, hospitais e postos de saúde com ambientes adequados para atender às demandas da população -, poderia ser um avanço.

Mas a nova proposta é tímida e pouco criativa. Ao legislar sobre um tributo que não é seu, a esfera federal resgata uma espécie de eadem mutata resurgo - isto é, por mais que pareça diferente, a proposta é sempre a mesma, repete o esforço de centralização fiscal de Getúlio Vargas e dos militares.

Renaldo A. Gonçalves, mestre em Economia e doutor em Ciências Políticas, é professor da PUC-SP