Título: Depois da Geórgia
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/08/2008, Economia, p. B2

Os acontecimentos das últimas semanas na Ossétia do Sul, na Abkházia e na Geórgia explicitaram importantes mudanças no equilíbrio político global. Pela primeira vez, desde a queda do comunismo, tornou-se evidente que existem limites concretos à estratégia norte-americana baseada na utilização da musculatura econômica e militar dos EUA.

Desde 1990, os EUA têm explorado ao limite a fragilização da Rússia. Adotou estratégia de cercamento, alicerçada na inclusão, na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de ex-repúblicas da URSS, bem como de ex-integrantes do Pacto de Varsóvia, da Polônia à Bulgária. Recentemente, foram assinados acordos com a Polônia e a República Checa para a instalação de sistemas antimísseis e radares para, supostamente, enfrentar possível ameaça iraniana, mas com claras implicações para a Rússia. Os EUA pretendem ampliar esse cordon sanitaire com a inclusão de ex-repúblicas soviéticas no Cáucaso, especialmente a Geórgia. Governos simpáticos aos EUA viabilizaram a construção de gasodutos ao sul da fronteira com a Rússia. Desde 1992, havia um frágil equilíbrio em relação à Ossétia do Sul e à Abkházia - onde há maiorias russas - e um acordo para a manutenção de forças de paz. O equilíbrio foi rompido por iniciativa do presidente georgiano Mikhail Saakashvili que ordenou o ataque à Ossétia do Sul, contando com o temor russo de provocar a OTAN. A resposta russa foi fulminante: desocupou a Ossétia do Sul e a Abkházia das forças georgianas e atacou objetivos estratégicos na Geórgia para inviabilizar novos ataques. Muitos se lembraram, tardiamente, da Rússia czarista, do ¿grande de jogo¿ na Ásia Central e do império que se expandiu a 140 quilômetros quadrados por dia entre Pedro, o Grande, e 1914.

O interesse principal da questão não é uma discussão ética sobre direitos de minorias nem mesmo sobre a integridade territorial da Geórgia, embora não seja fácil encontrar coerência, seja na posição russa, seja na posição ocidental. Os russos querem aplicar, no Cáucaso, os critérios usados pelos EUA e pela Europa para defender a autonomia do Kosovo.

Ficou evidente o ressurgimento do poderio militar russo. Mas mais importante foi a explicitação de que os EUA não tinham condições de ir além do conforto moral a Saakashvili e de que, do ponto de vista militar, nada seria feito para evitar a humilhação georgiana. A imprudência da estratégia dos EUA foi penosamente explicitada e a frustração norte-americana com sua própria incompetência foi tão grande que o governo se convenceu facilmente de que tudo seria explicado pela má-fé russa. E nisso foi acompanhado por muitos analistas.

O episódio tem repercussões importantes: nas relações da Rússia com os demais membros do G-8, na estabilidade do abastecimento de gás e petróleo para a União Européia, nas relações da Rússia com outras ex-repúblicas soviéticas fronteiriças na Europa e na Ásia Central. E também faz pensar, em contexto de simetria, no exercício do poder dos EUA nas suas esferas de influência mais próximas, afetando os interesses do Brasil.

O Brasil, como maior país do continente sul-americano, segundo qualquer critério - área, população, tamanho da economia -, deve necessariamente considerar a política regional como um pilar de sua política externa. Historicamente não houve grandes fricções entre o Brasil e os EUA em relação a esferas de influência, sendo implicitamente aceita a sua superposição. Tal situação foi facilitada pelo fato de que a esfera de influência geopolítica imediata dos EUA incluía com prioridade o México, a América Central e o Caribe, talvez a Venezuela. Inúmeros episódios, desde a diplomacia dos fuzileiros até a crise cubana de 1961, ilustram a política secular dos EUA quanto à sua área de influência imediata. Em contraste, o Brasil era pouco presente ao norte da América do Sul.

Novos desenvolvimentos perturbaram esse equilíbrio. Em primeiro lugar, o papel crucial da Colômbia no tráfico internacional de drogas, a convergência entre as Farc e o tráfico e a conseqüente reação dos EUA quanto à cooperação militar com o governo colombiano. Em segundo, a importância crescente das relações econômicas do Brasil com o continente que, exclusive o Canadá e os EUA, absorve hoje quase um quarto das exportações brasileiras (metade para o Mercosul). E, finalmente, a emergência de diversos governos na Venezuela, no Equador, na Bolívia e no Paraguai, com agendas populistas e ênfase no antiamericanismo.

Há clara sintonia de parte ponderável da coalizão governista no Brasil com os governos de esquerda nos países vizinhos. Isso tem levado o governo brasileiro a arcar com os altos custos econômicos e políticos gerados por demandas nacionalistas ou por interferência descabida nas relações do Brasil com outros países, especialmente no caso de Hugo Chávez. Os EUA têm estimulado o Brasil a cumprir o papel de conter Chávez, de segurar o valentão da festa. Mas o Brasil tem interesse próprio no assunto. O papel dos EUA na Colômbia já é suficientemente incômodo, significando extensão indesejável da sua esfera de influência imediata. Seria deplorável que esse papel fosse ampliado, aumentando significativamente a possibilidade de fricção direta entre Brasil e EUA. É essencial que esse cenário seja evitado e, para que isso seja possível, o pilar da política sul-americana do Brasil deveria ser a prudência. Lições práticas de Realpolitik são sempre desagradáveis.

*Marcelo de Paiva Abreu, doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio