Título: Escalada russa no Cáucaso
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Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2008, Notas e Informações, p. A3

A par dos previsíveis protestos contra a decisão de reconhecer unilateralmente a independência das províncias separatistas georgianas da Ossétia do Sul e Abkházia - anunciada quarta-feira pelo presidente russo Dmitri Medvedev -, os Estados Unidos e a União Européia (UE) tentam persuadir Moscou de que o acirramento das tensões com o Ocidente contraria em última análise os seus melhores interesses. É mais do mesmo que a Rússia ouviu no começo do mês, quando invadiu a Geórgia em represália à desastrada iniciativa do governo filo-americano de Tbilisi, liderado pelo presidente Mikhail Saakashvili, de reocupar os enclaves que desfrutam de ampla autonomia desde 1991, depois da primeira e igualmente fracassada intervenção militar georgiana.

O argumento é que, primeiro, a ¿reação desproporcional¿ russa à aventura de Saakashvili e, agora, o passo que parece prenunciar a anexação pelo menos da empobrecida Ossétia do Sul - uma área montanhosa de 70 mil habitantes, sem a menor condição de se tornar um Estado viável - poderão levar ao isolamento da Rússia, causando-lhe danos políticos e econômicos cujo alcance os seus líderes não deveriam subestimar. O problema é que, a começar do primeiro-ministro Vladimir Putin, o número um de Moscou, eles ou não acreditam na ameaça, que na melhor das hipóteses deteria o processo de integração russa ao sistema internacional, ou acreditam que isso não será o fim do mundo para o seu país dotado de imensas reservas de petróleo e gás.

Dias atrás, o próprio Putin comentou, com típica soberba, que a Rússia tem mais a ganhar do que a perder continuando fora da OMC. E Medvedev, perguntado por uma jornalista da BBC se não temia que a escalada no Cáucaso pudesse reviver os tempos de confrontação entre o Ocidente e a União Soviética, respondeu com palavras decerto escolhidas para transmitir ao exterior um senso de poderio e inabalável determinação. ¿Não temos medo de nada, nem da perspectiva de uma nova guerra fria¿, entoou. ¿A Rússia é um Estado que tem de garantir os seus interesses ao longo de toda a extensão de suas fronteiras. Isso é absolutamente claro.¿

Portanto, uma Geórgia por onde passa, rumo ao território russo, 1/3 do petróleo e gás extraído da região do Cáspio - e cujo governo, com o patrocínio dos Estados Unidos, ambiciona fazer parte da OTAN, a aliança militar remanescente da guerra fria - deve ser enfraquecida de todas as formas. O redesenho, por ato de império, do mapa dessa área estrategicamente vital para Moscou, ainda que ao preço de criar tensões a Oeste sem paralelo no curso de uma geração, é uma cartada característica dessa nova Rússia que se considera sob assédio americano nas suas antigas áreas de influência, mas já não se considera desprovida dos meios de pagar para ver. Se a Casa Branca referendou a secessão do Kosovo da República Sérvia, aliada da Rússia, por que o Kremlin não daria o troco na Geórgia, Estado-cliente dos EUA?

Pode ter sido apenas um esguicho retórico, mas não deixa de ser revelador do estado de espírito beligerante da elite política russa formada na era Putin a analogia feita pelo embaixador moscovita na OTAN, Dmitri Rogozin. Ele comparou o clima atual ao do verão de 1914, pouco antes de rebentar a 1ª Guerra Mundial. Declarações do gênero tendem a repercutir entre os ex-satélites soviéticos do Leste Europeu, especialmente na Ucrânia, que elegeu em 2004 um presidente, Viktor Yushchenko, não menos pró-ocidental do que o seu colega georgiano, e receia ser o próximo país a sofrer pressões da Rússia por também buscar a admissão na OTAN - o que enfurece a ponderável minoria russa de sua população.

Yushchenko julgou ¿inaceitável¿ o reconhecimento dos enclaves separatistas da Geórgia e falou em renegociar o acordo, válido até 2017, pelo qual a frota russa do Mar Negro usa como base o porto ucraniano de Sebastopol. (Para Moscou inaceitável é isso.) A maioria dos países da Europa Oriental que integram a UE, como Polônia, Estônia, Letônia e Lituânia, além da Grã-Bretanha, defende uma posição conjunta dura contra a Rússia. Mas duvida-se que prevaleçam. O fato é que a União Européia reluta em ir além das palavras diante da agressividade russa.