Título: Aborto de anencéfalo
Autor: Iwasso, Simone; Leite, Fabiane
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2008, Vida, p. A19

A criança que padece de anencefalia tem sido apresentada por alguns como uma espécie de ser maligno que provoca dor e sofrimento à sua mãe, seu pai e familiares. A solução que propõem é matá-la pelo aborto ou, segundo terminologia recém-inventada, ter seu parto antecipado terapeuticamente. Mas essa ¿antecipação¿ não objetiva a vida da criança, e sim sua morte.

Os defensores do aborto provocado de feto com anencefalia consideram-no subumano. Nesta concepção está presente uma ideologia de caráter eugênico, que fundamentou a medicina nazista a partir do livro Vidas que não valem a pena ser vividas, do jurista Karl Binding e do psiquiatra Alfred Hoch. Com base em tais concepções, foram eliminados milhares de crianças, adolescentes e adultos considerados não aptos a viver, ¿inviáveis¿ socialmente. A ¿piedade¿ que lhes era oferecida era a morte.

A menina Marcela, falecida no início de agosto com 1 ano e 8 meses, mostra claramente que a vida de um anencéfalo pode ser motivo de bênção, alegria e carinho para si, sua mãe e para a comunidade. Desejamos uma sociedade que, em vez de se abrir solidariamente aos doentes graves, propõe eliminá-los?

O Comitê Nacional de Bioética da Itália, composto por especialistas das diversas ciências médicas, diz que o anencéfalo, como os doentes graves em geral, ¿é uma pessoa vivente, e a reduzida expectativa de vida não limita seus direitos e dignidade¿.

A atitude adequada do Estado é prevenir a anencefalia, o que é possível especialmente mediante a ingestão de ácido fólico, de baixíssimo custo e elevada eficácia (em torno de 50%) e também amparar as mães e famílias, certo de que o abortamento provocado, inclusive no caso de crianças com anencefalia, causa traumas graves às mulheres, conforme relatório de 25 de agosto de 2008 do Centro Latino-Americano de Direitos Humanos. Enfim, do ponto de vista ético, é preciso partir do valor da pessoa, que transcende qualquer outro bem temporal. Isso se torna ainda mais claro se levarmos em consideração que a vida de cada indivíduo não é apenas um bem pessoal inalienável, mas também um bem social e de todos. Portanto, a sociedade tem a obrigação de promovê-la e defendê-la em todas as suas dimensões.

* Coordenador jurídico do Comitê Nacional Brasil sem Aborto ** Assessor da Comissão Vida e Família e Comissão de Bioética da CNBB

CONTRA: Débora Diniz e Heverton Pettersen *

A anencefia é uma malformação fetal incompatível com a vida. A certeza médica é a de que um feto com anencefalia não resiste ao parto. Os casos raros de sobrevida são de horas ou poucos dias. Essa é a tese científica internacionalmente válida e reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. Quase todos os países democráticos autorizam a antecipação do parto nesse caso. O Brasil é uma exceção entre países com medicina desenvolvida. Os grupos religiosos contrários à ação de anencefalia em curso no Supremo Tribunal Federal acreditam ter uma história que contesta essa certeza científica. Marcela de Jesus é uma criança que teria vivido 1 ano e 8 meses com anencefalia.

Há duas razões pelas quais Marcela não refuta a tese apresentada ao STF. A primeira delas é que ela não era anencéfala. Anencefalia é a ausência total ou parcial da calota craniana, dos hemisférios cerebrais, do cerebelo, com presença de tronco cerebral rudimentar. A tomografia de Marcela apresentada na primeira audiência pública de instrução ao STF mostra que ela tinha tronco cerebral, cerebelo e uma parte do hemisfério cerebral. Ela tinha desenvolvimento incompleto do cérebro. Marcela foi um caso clássico de erro de diagnóstico. Por não ser anéncefala, sobreviveu 20 meses.

A segunda razão é que mesmo que Marcela fosse uma exceção ainda desconhecida pela ciência médica, um único caso não seria suficiente para refutar uma tese científica e jurídica. A medicina não se pauta por exceções. E o raciocínio jurídico em julgamentos de questões de saúde se fundamenta em conhecimentos científicos sistemáticos.

Mas não há história de exceção que desafie o STF nesta ação. O que há são histórias de mulheres anônimas que enfrentam o luto precoce pelo futuro filho. Elas esperam uma decisão da mais alta corte para abreviar a dor pelo filho que não sobreviverá.

Não há tratamento ou cura para a anencefalia e, por isso, não há o que fazer pela saúde do feto. Mas há como cuidar dessas mulheres. Cuidar de seu sofrimento é reconhecer que a decisão pela antecipação do parto é matéria de ética privada. Não cabe ao Estado obrigar as mulheres a manter uma gestação para enterrar o filho instantes após o parto. São essas mulheres que esperam há quatro anos que o STF escute sua dor.

*Professora de Bioética da Universidade de Brasília e vice-Presidente da Soc. Brasileira de Medicina Fetal